domingo, 4 de abril de 2010

As isabelas do Maranhão


Acompanho, com horror e nojo, a cobertura de mais uma tragédia maranhense: a morte em série de crianças, inclusive recém-nascidas, por falta de leitos de UTI no estado.

A Folha deste domingo registra a 16ª morte do ano ─ a vítima é Mayara Francelino, 8, que agonizava há nove dias, em leito comum, numa sala abafada e imunda, com meningite, à espera de uma vaga em unidade de terapia intensiva em sua cidade, Imperatriz.

Nem uma liminar obtida na Justiça, obrigando o governo maranhense a lhe oferecer UTI, mesmo que fosse em clínica particular, conseguiu materializar a tempo o tratamento que talvez lhe desse alguma chance de sobrevivência. A UTI só apareceu quando era tarde demais.

Mayara é a vítima de número 16 de mais essa incúria do governo instalado no Palácio dos Leões, em São Luís, que há mais de 40 anos abriga, com fausto, pompa e riqueza progressiva, uma família de hienas que se refestelam na carniça de seu povo. O estado tem o pior índice de IDH do país, a pior educação e o pior sistema de saúde, entre outros superlativos do mal.

No ano passado, 43 outras crianças morreram no Maranhão nas mesmas circunstâncias. O mesmo governo que sonega a essas crianças, ainda no útero das mães, condições sociais mínimas de nutrição e bem-estar, mata-as assim que vêm ao mundo, ou um pouco mais tarde, porque devem ter faltado pelo menos 13 milhões de dólares para a instalação dos necessários leitos de UTI infantil, a fim de atender às vítimas da contaminação pela miséria e pelo descaso, que resultam em baixo peso ao nascer, desnutrição, infecções oportunistas.

Ouso afirmar que os 13 milhões de dólares de Fernando Sarney que tomavam sol nas Bahamas têm a ver com as mortes dessas crianças. E que essa tragédia está intimamente relacionada à atuação dos Sarneys, que há 40 anos sugam e desgraçam o Maranhão.

Leio os jornais com horror, nojo e uma ponta de sentimento de culpa: enquanto perco tempo e verve analisando as crônicas mambembes do patriarca dessa família infame, relevo o fato de que ser o pior escritor do mundo é o mais leve de seus delitos.

Teria José Sarney a decência e a coragem de assinar um texto sobre Mayara ─ como se arvorou em fazer, numa crônica da Folha, a respeito de uma menina haitiana que ele identificou como MJ, amputada a sangue frio num hospital de campana improvisado em Porto Príncipe?

A inicial é a mesma. E há outra coincidência: MJ foi vítima de uma catástrofe natural; a pequena Mayara, também ─ a perpetuação do governo Sarney no Maranhão é uma catástrofe natural, e muito mais mortal, porque acumula danos há mais de 40 anos, instabilizando, pela miséria eterna, os níveis subterrâneos do terreno social do estado.

O governo Sarney não socorreu Mayara a tempo ─ nem com ordem judicial. Mas era uma ordem difícil mesmo de cumprir: não há leitos suficientes no estado, nem à força.

Com o cinismo que é de família, a governadora, só depois da morte de Mayara e de outras 58 crianças Sem-UTI, designou 5 milhões de reais para a criação de um punhado de leitos no hospital onde agonizou a menina - o Hospital Municipal Infantil de Imperatriz, conhecido, à propos, como Socorrinho.

Noves fora os 20 ou 30% dessa verba que vão morrer no caminho, sem passar pela futura UTI, até diretores do Socorrinho acham que a coisa vai continuar como está e novas Mayaras morrerão: para abrigar uma unidade da terapia intensiva, o hospital precisaria rever radicalmente seus padrões de higiene, que estão abaixo dos da tenda onde MJ foi amputada.

Por força de hábito, mas me sentindo a pior das criaturas, passei os olhos pela crônica de José Sarney na Folha de sexta-feira: ele continua obcecado pelo avanço da internet, que mal conhece, agora ameaçando a sobrevivência dos jornais impressos.

No final, depois daqueles raciocínios escabrosamente sem nexo de que só o pior escritor do mundo é capaz, ele sentencia, bem a seu estilo:
─ Finalmente, como o rádio e a TV não mataram o jornal, a internet não o matará. Só quem pode matá-lo é ele mesmo, querendo ser internet ou fazendo mau jornalismo.

Podemos garantir ao cronista que, mesmo que essa previsão não se concretize, e o jornal impresso vá a encontro de sua morte, as gerações futuras terão acesso, num hipotético arquivo nacional da vergonha e do escárnio, a um pedaço de papel embolorado noticiando a morte de Mayara e das demais crianças maranhenses ─ cuja lembrança, um dia, assombrará também as futuras gerações da família Sarney.

As Isabellas do Maranhão são atiradas para a morte por pais-da-pátria que nem tentam enxergá-las das janelas dos palácios. Morrem sem barulho. E acabam esquecidas na vala comum reservada aos que jamais conseguirão aparecer na primeira página do jornal.

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