terça-feira, 7 de dezembro de 2010

Internet e pós-capitalismo: muito além do Linux



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Entrevista:
MUITO ALÉM DO LINUX
Marcelo Branco, do Fórum Internacional do Software Livre, diz porque o evento incorporou temas como a liberdade na internet e fala da construção de uma nova agenda pós-capitalista
Por Antônio Martins
(Publicado em Retrato do Brasil, 09/2009)
Algo novo marcou a 10ª edição do Fórum Internacional de Software Livre (FISL) – um encontro que reúne todo os anos, em Porto Alegre, milhares de programadores, ativistas do universo Linux e estudantes. Entre 24 e 27 de junho, esse público assistiu, como de costume, a dezenas de palestras técnicas e lotou auditórios onde brilharam ícones da programação em código aberto, como Richard Stallman.
Mas as grandes atrações foram algo que transcende o mundo um tanto nerd dos criadores de softwares. Ninguém foi tão requisitado para falas, entrevistas e autógrafos quanto o sueco Peter Sunde, de 31 anos. Membro do coletivo Pirate Bay, bissexual e praticante do veganismo, ele é processado em seu país, num julgamento de repercussão internacional, por manter um dos sites de compartilhamento de música e vídeos mais populares da internet.
Também o tema que dominou os debates políticos no 10º FISL relaciona-se às novas formas de circulação do conhecimento e cultura. Inúmeras atividades debateram o projeto de lei por meio do qual o senador Eduardo Azeredo (PSDB-MG) pretende monitorar e restringir a troca de conteúdos digitais pela rede. Presente ao ato que encerrou o Fórum, e visivelmente sensibilizado pelo evento, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva condenou de forma explícita a proposta.
O gaúcho Marcelo Branco é o personagem carismático que ajudou a articular, num único evento, temas que nem sempre andam juntos. Ele está ligado ao FISL desde seu início, em 2000. À época, respondia pela vice-presidência da empresa de processamento de dados do Rio Grande – a Procergs.
O ativismo de Branco vem de longe. Nos anos 1990, ele foi, como sindicalista, um dos líderes da luta contra a privatização da estatal brasileira de telecomunicações – a extinta Telebrás. Na última década, transitou entre Europa e Brasil, colaborou com Manuel Castells e ajudou a implantar políticas de difusão do software livre em diversos governos regionais espanhóis. No ano passado, assumiu a coordenação geral da Associação do Software Livre (ASL), a ONG que se tornou, desde 2002, responsável pela organização do FISL. Na entrevista a seguir, Branco expõe suas ideias sobre a emergência das redes e o futuro da internet e a necessidade de mantê-las sem vigilância.
Retrato do Brasil: Dez anos depois de ter ajudado a lançar o FISL1, você voltou a Porto Alegre para organizar a décima edição do evento. Qual o balanço dessa iniciativa?
Marcelo Branco: O FISL10 foi o maior e melhor de nossos fóruns. Reuniu cerca de 10 mil pessoas, que participaram de dezenas de conferências, com centenas de palestrantes, muitos deles internacionais. Politicamente, o ganho é maior. O evento marcou um momento de aglutinação das forças que, ao defender a liberdade na internet, procuram abrir espaço para formas livres e não-mercantis de circulação da informação, do conhecimento, dos bens culturais. Valorizou o software livre, mas foi além dele. Tratou de uma das disputas centrais na conjuntura crucial, e cheia de alternativas, que vivemos.
RB: Por que você vê a luta pela livre circulação de informações como algo tão central, politicamente?
MB: A possibilidade de desintermediar as relações sociais pode abrir uma nova etapa civilizatória – mas seu sentido ainda é incerto. Os espaços para a articulação direta entre os seres humanos, sem as condições, limites e barreiras impostos pelo capital, estão se multiplicando. Há muito tempo falávamos em associações produtivas diretas entre trabalhadores, mas não havia meios tecnológicos para fazê-lo com rapidez e em grande escala. Esses meios são oferecidos agora pela internet. A desnecessidade do capital aparece de forma ainda mais nítida em setores como a antiga indústria cultural, ou do copyright. Há alguns anos, uma banda de músicos que quisesse tornar-se conhecida precisava dos serviços de uma gravadora para ter acesso a estúdios, prensar discos, levá-los às lojas, fazer publicidade. Hoje, todos estes papéis podem (e são, em muitos casos) realizados pelos próprios músicos – inclusive porque a digitalização afundou os preços dos equipamentos. É um sintoma de relação social em que o capital está se tornando, simplesmente, obsoleto.
Porém, sozinhas, estas condições não asseguram o surgimento de uma sociedade melhor. A condição democrática não é algo explícito, ou necessário, na rede. A internet pode ser usada igualmente para controle social. É por isso que na disputa pelos rumos da rede tem enorme importância na própria definição dos sentidos do século XXI. Não por acaso, o tema central do FISL deste ano foi “Liberdade. Contra o controle e a vigilância na internet”.
RB: A tecnologia, por si mesma, nunca foi capaz de promover transformações sociais. Que disputas políticas se dão em torno destes desenvolvimentos técnicos?
MB: São batalhas de enorme intensidade. O capital investe em desespero contra compartilhamento de cultura e conhecimento – porque é algo que ameaça o território sagrado da propriedade privada. Milhares de pessoas, entre elas, crianças e adolescentes, são sendo processadas neste exato momento pela indústria fonográfica, por julgarem que tem direito de compartilhar bens culturais sem ter de pagar por isso. Se o movimento resiste e avança, é por expressar um direito do qual as pessoas não estão dispostas a abrir mão.
Os últimos anos foram marcados por enormes avanços democratizadores. Desde que a internet passou da fase pontocom para a 2.0, tem sucesso as iniciativas que promovem o compartilhamento, a desmercantilização, a colaboração. Estamos vivendo o início da época das redes sociais, que multiplica a potência e autonomia dos grupos articulados e capazes de gerar inteligência coletiva. Há cerca de um ano, no entanto, começou um contra-ataque. Alguns de seus símbolos são a lei de restrição à internet na França, aprovada por proposta e pressão do governo Sarkozy, mas derrubada em seguida pelo tribunal constitucional; o processo contra o grupo sueco Pirate Bay, cujo site facilita a troca de arquivos digitalizados; e, no Brasil, o projeto de lei do senador Eduardo Azeredo, que, a pretexto de combater a pedofilia e os crimes bancários, permite criminalizar o compartilhamento de cultura e conhecimento.
É um ataque violento e combinado. Nele, estão envolvidos três agentes fundamentais. Um são as empresas dominantes em setores onde o capital está se tornando rapidamente obsoleto, como a indústria fonográfica e cinematográfica. Outro é o dos segmentos dos Estados mais ligados à repressão, controle social e vigilância. São eles que procuram associar troca de arquivos digitais com “terrorismo”. Fato emblemático: a Convenção de Budapeste, onde se armou a ofensiva desencadeada agora contra a liberdade na rede, foi firmada dois meses após os atentados de 11 de setembro de 2001, num momento político marcado pelo medo. O Brasil não está entre os cerca de 40 países signatários. Por último, a velha mídia, que ideologicamente não consegue conceber relações sociais pós-capitalistas, e cujos interesses oligopolítisticos são diretamente afetados pela emergência da blogosfera.
RB: Neste cenário, qual a importância do discurso em que Lula condenou, no ato de encerramento do FISL, o projeto Azeredo?
MB: Compartilho de todas as análises que ressaltam as ambiguidades decorrentes do caráter heterogêneo do governo Lula. Mas a sensibilidade do presidente para a mobilização social é algo que deve fazer parte de nossas equações políticas. No FISL, ele sentiu claramente o clima. Lula encampou a luta da sociedade civil, resolvendo a contradição que persistia no governo, até há pouco. A Polícia Federal esteve sempre ao lado do projeto Azeredo. O Ministério da Justiça abriu canais de diálogo, mas tentava uma conciliação impossível.
Esse gesto tornou-se viável, também, porque a própria sociedade civil combinou intransigência na defesa dos direitos com equilíbrio. Não somos contra a existência de leis para regular a internet, nem a favor de complacência com os crimes digitais. Propomos que o Estado participe das regulações necessárias ao fluxo das relações no mundo digital. Mas queremos que isso se dê não a partir do prisma da repressão – como ocorre na proposta do senador Azeredo – mas dos direitos. Foi isso o que o presidente propôs ao ministro Tarso Genro, durante o FISL, numa reunião conjunta entre membros do governo e da sociedade civil. É uma postura que coloca o Brasil em posição de vanguarda.
RB: Por que, além da direita, certos setores da esquerda parecem desconcertados, diante da emergência de relações que permitem a desintermediação?
MB: Vivemos uma transição delicada. As novas tecnologias criam condições para desintermediar também as relações políticas. Não quero fazer projeções para o futuro, mas observo que, hoje, defender uma causa qualquer é uma opção que dispensa adesão a um partido político. Novas redes de mobilização social, em favor de objetivos específicos, vão se multiplicando a cada instante.
Ao contrário do que sustenta a crítica conservadora, elas não são apenas virtuais. Produzem efeitos concretos, dos quais há exemplos abundantes: a campanha contra a lei Azeredo; a derrubada do governo Aznar, em 2004, na Espanha; a denúncia da invasão do Líbano por Israel, em 2006; a avalanche em favor de Barack Obama; a persistente mobilização dos iranianos contra o fundamentalismo do governo Ahminejad.
No universo político e sindical da esquerda, muitos resistem a compreender essa transformação. Essa resistência conservadora está na origem das críticas endereçadas a novidades políticas como o Fórum Social Mundial.
O curioso é que as redes provocam desorientação semelhante também no terreno do capital. Grandes empresas (como a Google) nascem e se agigantam num piscar de olhos, porque são sensíveis ao desejo de comunicação e des-hierarquização presente na sociedade. Outras vão se adaptando à mudança. Oracle, Sun, UOL e Itautec estão presentes e atuantes no FISL10. Mas setores como a indústria do copyleft atacam com virulência a nova lógica.
RB: Um dos desdobramentos principais da internet se dá na mídia. Que perspectivas você vê para a Conferência Nacional de Comunicações, convocada para dezembro próximo?
MB: Estou muito preocupado: temo que corremos o risco de perder uma grande oportunidade. Em relação à conferência, penso que duas posturas são ineficazes ou insuficientes. A primeira é denunciar o conteúdo da mídia de massas (como se fosse possível esperar dela profundidade ou posturas democráticas). A segunda é supervalorizar as concessões públicas do espaço radioelétrico, hoje dominadas por alguns grandes grupos, em associação com famílias oligárquicas ou caciques políticos regionais. Esses pontos, de enorme importância no século passado, estão perdendo sentido aceleradamente. Se até os grupos de mídia mais contemporâneos e especialmente o público estão migrando para a internet, que efeito terá, em dez ou quinze anos, redistribuir os canais de rádio ou as estações de TV?
Enxergo uma agenda alternativa. Nela, as batalhas que marcaram a luta pela democracia midiática nas décadas anteriores não desaparecem. Mas o centro da disputa migra para a difusão da cultura digital. Livre circulação de conhecimento e bens imateriais na rede. Acesso público e gratuito à internet, em banda larga. Formação conceitual, técnica e tecnológica para uso das novas mídias. Políticas públicas novas, para realidades, demandas e desejos inéditos.
LEIA MAIS:
Para conhecer em detalhes a programação do FISL, um curioso amálgama de atividades técnicas e políticas, visite http://www.fisl.org.br/10/www/festival-de-cultura-livre
O Pirate Bay, considerado por muitos o mais popular site de compartilhamento de música, vídeos e outros conteúdos digitais da atualidade, pode ser encontrado em http://thepiratebay.org
Uma excelente fonte de informações sobre o projeto do senador Eduardo Azeredo, para controle e vigilância da internet, é o blog coletivo Trezentos (http://www.trezentos.blog.br), em especial no espaço de Sérgio Amadeu: (http://www.trezentos.blog.br/?author=1)
O vídeo do ato de encerramento do FISL, com o discurso em que Lula rejeita o projeto de lei do senador Eduardo Azeredo está em http://www.youtube.com/watch?v=QBE1Ux-saqA

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