quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Execelente resumo dos acontecimentos envolvendo a greve de fome dos estudantes na Ufma. Artigo de Flávio Reis


O DILEMA DA UFMA

Flávio Reis
Departamento de Sociologia e Antropologia


Próxima de completar 50 anos de sua fundação, a Universidade Federal do Maranhão vive um momento emblemático. A greve de fome desencadeada há mais de uma semana pelos residentes das Casas de Estudantes traz em seu desenrolar toda a radiografia de um dilema antigo. Com uma estrutura administrativa arcaica, a universidade é dirigida de forma extremamente concentradora e, dependendo do ocupante do cargo de reitor, esta característica pode ser drasticamente intensificada.
Depois de uma década sem investimentos por parte do governo federal, os reitores de IFES da era REUNI, viram-se na situação de existência de recursos aliado a estruturas administrativas arcaicas que possibilitavam extrema liberdade pessoal na definição de prioridades. No Maranhão, estado ainda com marcas oligárquicas muitos fortes, o peso dessa cultura política concentradora de decisões encontrou sua tradução histórica no medo da dissenção, no elogio subserviente dos poderosos, na bajulação das chefias. A cultura oligárquica não suporta debates, pois se reproduz em circuito quase fechado, entre atores escolhidos a dedo, com roteiro devidamente marcado. Numa palavra, encontra-se em relação inversa ao ideal democrático e republicano de publicização ampla dos atos e dos processos decisórios. Na era do espetáculo, no entanto, preocupa-se enormemente com a encenação.
A gestão do reitor Natalino Salgado se desenvolveu exatamente apoiada no festival de recursos e na exacerbação da concentração de poderes. Sem uma discussão com a comunidade universitária, pondo e dispondo a bel prazer, com a anuência tácita dos conselhos da administração superior ou mesmo simplesmente desconhecendo-os, o reitor Natalino Salgado executou com maestria todos os traços do nosso velho oligarquismo. Movido pela política de expansão promovida pelo governo federal, ele criou o mito do grande administrador, através de uma construção obsessiva em torno do autoelogio.
No fundo, apenas seguia a cartilha do MEC, acatando tudo. Os planos de expansão foram tocados como diretrizes e obras da administração superior e nunca foram alvo de discussão democrática. O campus universitário foi remodelado e a UFMA inchando, talvez seja a palavra certa, sem que a comunidade fosse ouvida. Tudo se resumiu à vontade do reitor, que passou a viver numa verdadeira ilha da fantasia, cheia de números, percentuais e muita propaganda. Acompanhado sempre de um séquito, encarnou a figura do chefe, aquele que encena uma proximidade com a comunidade que dirige, mas na verdade mantém o controle das decisões com mão de ferro.
Como os estudantes já demonstraram largamente, a luta pela moradia no campus é antiga. A decisão do reitor de dar outra destinação ao prédio que em sua concepção original estava voltada para a moradia estudantil, depois de anos de protelações, ensejou a tomada de posição drástica dos estudantes, iniciada na terça-feira, 26 de novembro, quando o aluno Josemiro Oliveira se acorrentou ao portão de entrada e declarou-se em greve de fome. Em sua posição olímpica, o reitor de início pouco se importou e, em viagem, silenciou, enquanto a assessoria de comunicação limitava-se a registrar que a universidade se pronunciaria apenas após seu retorno, no melhor estilo “volte depois, o dono da casa não se encontra”. Tivemos a partir daí uma nota postada no site da UFMA que apenas reafirmava investimentos feitos na assistência estudantil; o não comparecimento do reitor para presidir a reunião do CONSEPE, na sexta-feira, onde o assunto foi debatido, apesar do espantoso voto contrário de alguns conselheiros; uma curta entrevista do próprio reitor, onde repetia a mesma lenga-lenga da nota.
No sábado, diante da falta de resposta da reitoria (a não ser a instalação de câmeras no local do protesto, no pátio em frente ao prédio), que simplesmente afirmava não ter sido solicitado nenhum “agendamento”, numa reunião do movimento pela moradia no campus, com a presença também de estudantes não residentes e alguns professores, além de deputados da comissão de direitos humanos da assembleia legislativa e um membro da OAB, que foram convidados a tomarem conhecimento do problema, ficou claro a necessidade de colocar o protesto na rua, pois a situação se agravava a cada momento.
Foi neste contexto, inconformados diante do silêncio irresponsável por parte da administração superior, que os estudantes e professores ali presentes resolveram levar seus gritos e cartazes à porta da casa do reitor. Sob os olhares da vigilância patrimonial da universidade, que monitorava de perto o que estava sendo discutido e saiu para fazer as vezes de segurança privada, todo o protesto foi pacífico e o objetivo foi alcançado. A situação extrapolava os muros da universidade e chegava às ruas. Poucas horas depois, Josemiro passou mal e precisou ser levado para o Hospital Universitário, assumindo seu lugar, igualmente acorrentado e em greve de fome, o estudante Daniel Fernandes.
Na segunda-feira, dia 2 de dezembro, após uma manifestação feita na Avenida dos Portugueses no início da manhã, com o bloqueio da passagem dos carros e o grande engarrafamento ocasionado, o reitor finalmente decidiu entrar em cena, mas não ainda para dialogar com os manifestantes e discutir sua reivindicação, e sim, para falar à imprensa. Na coletiva convocada ainda pela manhã, reafirmou ter feito os maiores investimentos da história da UFMA; disse que não havia desvio de função na aplicação da verba, pois o prédio não teria sido construído com esta finalidade e que a nova destinação (então existia outra, não?), voltada para assistência estudantil, serviria a um número muito maior de pessoas, portanto sua opção se enquadrava no projeto de inclusão social. Por fim, afirmou ter sido o “mais democrata” de todos os reitores, apto a ouvir todos os segmentos da universidade, apesar de dizer, de maneira totalmente extemporânea, que o protesto era fruto de uma radicalidade pela proximidade de eleições sindicais e estudantis, sem nenhuma explicação. Nas respostas foi taxativo ao dizer que não aceitava abrir mão do prédio. Antes de sentar com os estudantes tratou, portanto, de afirmar logo que não acataria a única pauta do movimento: a entrega da casa para a residência estudantil.
Apenas na terça-feira, uma semana depois do início do protesto, o Magnífico se encontrou com representantes das residências estudantis, com a presença de representantes da OAB e da Defensoria Pública da União. Isto após ter realizado, ainda no dia anterior, uma esdrúxula reunião com diretores de alguns centros acadêmicos (?!), escolhidos entre os que lhe são próximos, pois a entrada de vários outros foi mesmo barrada no clima de fechamento e truculência que tomou conta do Palácio Cristo Rei; ter ido ao bispo em comitiva, incomodado com a nota expedida pela Comissão Arquidiocesana Justiça e Paz, ressaltando que os direitos são geralmente fruto de lutas; e de ter insistido na realização de uma reunião prévia com a defensoria pública. Enquanto buscava apoio sem sucesso, dezenas de declarações favoráveis à luta dos estudantes começaram a circular, vindas não só de diretórios acadêmicos, mas de núcleos de estudos, pesquisadores, professores, departamentos e outros, na esfera acadêmica, além de várias manifestações de solidariedade por entidades da sociedade civil.
O resultado da reunião com os estudantes das casas de moradia foi um fracasso, pois a decisão de não entregar o prédio já estava anunciada, uma posição típica de quem não sabe dialogar. Em troca do fim da mobilização, o reitor propôs, então, que outro prédio fosse construído no campus, com a promessa de apresentar um projeto em 60 dias e a partir daí buscar os recursos necessários. Ora, para quem vem sendo levado na conversa há tanto tempo e depois de ocupações de reitoria, termos de compromisso etc. viu tudo virar nada por determinação pura e simples do reitor, como aceitar tal proposta? Como trocar o sacrifício brutal a que vem sendo expostos seus colegas em greve de fome e todos eles numa mobilização difícil e cansativa, por uma nova promessa de quem teve anos para efetivar uma decisão herdada da administração anterior e do conhecimento de todos, mas sempre criou desculpas e empecilhos para concretizá-la, simplesmente porque tem uma avaliação, exposta sem maiores considerações na coletiva, de que “não é conveniente” a presença permanente de alunos no campus?
O próximo passo do reitor, após o fracasso da reunião, foi convocar uma nova entrevista coletiva para anunciar a sua decisão de baixar uma resolução determinando que a casa para a moradia estudantil seja construída no campus. Ou seja, ele toma mais uma de suas decisões solitárias, impondo o que foi recusado na reunião como forma de “solução” do conflito e vai para a mídia apontar os estudantes como intransigentes. Tal decisão não soluciona nada, apenas agrava e acirra o impasse.
A intolerância às posições divergentes, tão arraigada nesta administração, teve um ponto alto de demonstração num manifesto assinado pela Pró-Reitora de Gestão e Finanças, onde o protesto dos estudantes é desqualificado como fruto de manipulações por entidades de classe e partidos políticos. O texto, postado no facebook no dia 3, pode ser classificado, sem nenhum exagero, de Manifesto da Truculência. Não demonstra nenhuma preocupação com a situação dos manifestantes, inclusive reclamando que um leito do Hospital Universitário estaria sendo ocupado para atender a um “capricho” (pasmem!) de um estudante. Fora isto, e em caixa alta, frisa que a folha de pagamentos pode ter problemas se continuarem os protestos na entrada do campus. A que se deve uma observação tão fora do objeto em discussão? Criar alguma antipatia dos professores, sempre apertados em seus rendimentos, ao movimento? E esta coleção de despautérios termina ainda falando em democracia e diálogo...
A questão que se coloca de forma cada vez mais urgente é se a comunidade universitária ficará refém da intransigência de um reitor acostumado a dar a palavra final sobre tudo ou se colocará firmemente ao lado dos estudantes, levando a administração a tratar o caso com mais realismo, reconhecendo as necessidades urgentes denunciadas e ampliando o acesso à moradia estudantil. É até ridículo afirmar que a UFMA possui mais de vinte mil alunos com matrícula presencial e apenas três casas velhas no centro da cidade como moradia estudantil, atendendo a menos de cem pessoas. Nos campi do interior do estado, os relatos indicam que a situação também é crítica.
Na ação desesperada de alguns estudantes, com todas as dificuldades que enfrentam para se manter na universidade, está a possibilidade de resgatar um mínimo da autonomia tão violentada nos últimos anos. Para isto, é preciso insistir que esta não é uma questão isolada, mas o fruto recorrente de uma maneira de administrar totalmente anacrônica. O impasse em torno da moradia estudantil diz respeito a todos, principalmente pela forma como foi gerado e tem sido encaminhado. Não é possível manter o cotidiano como se não estivesse acontecendo nada, enquanto alunos se acham acorrentados em greve de fome. Lavar as mãos diante disto é sancionar não só o autoritarismo sem freios da administração do reitor Natalino Salgado, mas aceitar passivamente a barbárie que se desenrola hoje dentro do campus da UFMA.
Enquanto a comunidade universitária ainda vacila, Daniel Fernandes foi recolhido ao ambulatório na entrada do campus e um terceiro aluno, Rômulo Santos, iniciou também a greve de fome. Será que vamos esperar o drama se transformar em tragédia?


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