O
DILEMA DA UFMA
Flávio
Reis
Departamento
de Sociologia e Antropologia
Próxima de
completar 50 anos de sua fundação, a Universidade Federal do
Maranhão vive um momento emblemático. A greve de fome desencadeada
há mais de uma semana pelos residentes das Casas de Estudantes traz
em seu desenrolar toda a radiografia de um dilema antigo. Com uma
estrutura administrativa arcaica, a universidade é dirigida de forma
extremamente concentradora e, dependendo do ocupante do cargo de
reitor, esta característica pode ser drasticamente intensificada.
Depois de uma década
sem investimentos por parte do governo federal, os reitores de IFES
da era REUNI, viram-se na situação de existência de recursos
aliado a estruturas administrativas arcaicas que possibilitavam
extrema liberdade pessoal na definição de prioridades. No Maranhão,
estado ainda com marcas oligárquicas muitos fortes, o peso dessa
cultura política concentradora de decisões encontrou sua tradução
histórica no medo da dissenção, no elogio subserviente dos
poderosos, na bajulação das chefias. A cultura oligárquica não
suporta debates, pois se reproduz em circuito quase fechado, entre
atores escolhidos a dedo, com roteiro devidamente marcado. Numa
palavra, encontra-se em relação inversa ao ideal democrático e
republicano de publicização ampla dos atos e dos processos
decisórios. Na era do espetáculo, no entanto, preocupa-se
enormemente com a encenação.
A gestão do reitor
Natalino Salgado se desenvolveu exatamente apoiada no festival de
recursos e na exacerbação da concentração de poderes. Sem uma
discussão com a comunidade universitária, pondo e dispondo a bel
prazer, com a anuência tácita dos conselhos da administração
superior ou mesmo simplesmente desconhecendo-os, o reitor Natalino
Salgado executou com maestria todos os traços do nosso velho
oligarquismo. Movido pela política de expansão promovida pelo
governo federal, ele criou o mito do grande administrador, através
de uma construção obsessiva em torno do autoelogio.
No fundo, apenas
seguia a cartilha do MEC, acatando tudo. Os planos de expansão foram
tocados como diretrizes e obras da administração superior e nunca
foram alvo de discussão democrática. O campus universitário foi
remodelado e a UFMA inchando, talvez seja a palavra certa, sem que a
comunidade fosse ouvida. Tudo se resumiu à vontade do reitor, que
passou a viver numa verdadeira ilha da fantasia, cheia de números,
percentuais e muita propaganda. Acompanhado sempre de um séquito,
encarnou a figura do chefe, aquele que encena uma proximidade com a
comunidade que dirige, mas na verdade mantém o controle das decisões
com mão de ferro.
Como os estudantes
já demonstraram largamente, a luta pela moradia no campus é antiga.
A decisão do reitor de dar outra destinação ao prédio que em sua
concepção original estava voltada para a moradia estudantil, depois
de anos de protelações, ensejou a tomada de posição drástica dos
estudantes, iniciada na terça-feira, 26 de novembro, quando o aluno
Josemiro Oliveira se acorrentou ao portão de entrada e declarou-se
em greve de fome. Em sua posição olímpica, o reitor de início
pouco se importou e, em viagem, silenciou, enquanto a assessoria de
comunicação limitava-se a registrar que a universidade se
pronunciaria apenas após seu retorno, no melhor estilo “volte
depois, o dono da casa não se encontra”. Tivemos a partir daí uma
nota postada no site da UFMA que apenas reafirmava investimentos
feitos na assistência estudantil; o não comparecimento do reitor
para presidir a reunião do CONSEPE, na sexta-feira, onde o assunto
foi debatido, apesar do espantoso voto contrário de alguns
conselheiros; uma curta entrevista do próprio reitor, onde repetia a
mesma lenga-lenga da nota.
No sábado, diante
da falta de resposta da reitoria (a não ser a instalação de
câmeras no local do protesto, no pátio em frente ao prédio), que
simplesmente afirmava não ter sido solicitado nenhum “agendamento”,
numa reunião do movimento pela moradia no campus, com a presença
também de estudantes não residentes e alguns professores, além de
deputados da comissão de direitos humanos da assembleia legislativa
e um membro da OAB, que foram convidados a tomarem conhecimento do
problema, ficou claro a necessidade de colocar o protesto na rua,
pois a situação se agravava a cada momento.
Foi neste contexto,
inconformados diante do silêncio irresponsável por parte da
administração superior, que os estudantes e professores ali
presentes resolveram levar seus gritos e cartazes à porta da casa do
reitor. Sob os olhares da vigilância patrimonial da universidade,
que monitorava de perto o que estava sendo discutido e saiu para
fazer as vezes de segurança privada, todo o protesto foi pacífico e
o objetivo foi alcançado. A situação extrapolava os muros da
universidade e chegava às ruas. Poucas horas depois, Josemiro passou
mal e precisou ser levado para o Hospital Universitário, assumindo
seu lugar, igualmente acorrentado e em greve de fome, o estudante
Daniel Fernandes.
Na segunda-feira,
dia 2 de dezembro, após uma manifestação feita na Avenida dos
Portugueses no início da manhã, com o bloqueio da passagem dos
carros e o grande engarrafamento ocasionado, o reitor finalmente
decidiu entrar em cena, mas não ainda para dialogar com os
manifestantes e discutir sua reivindicação, e sim, para falar à
imprensa. Na coletiva convocada ainda pela manhã, reafirmou ter
feito os maiores investimentos da história da UFMA; disse que não
havia desvio de função na aplicação da verba, pois o prédio não
teria sido construído com esta finalidade e que a nova destinação
(então existia outra, não?), voltada para assistência estudantil,
serviria a um número muito maior de pessoas, portanto sua opção se
enquadrava no projeto de inclusão social. Por fim, afirmou ter sido
o “mais democrata” de todos os reitores, apto a ouvir todos os
segmentos da universidade, apesar de dizer, de maneira totalmente
extemporânea, que o protesto era fruto de uma radicalidade pela
proximidade de eleições sindicais e estudantis, sem nenhuma
explicação. Nas respostas foi taxativo ao dizer que não aceitava
abrir mão do prédio. Antes de sentar com os estudantes tratou,
portanto, de afirmar logo que não acataria a única pauta do
movimento: a entrega da casa para a residência estudantil.
Apenas na
terça-feira, uma semana depois do início do protesto, o Magnífico
se encontrou com representantes das residências estudantis, com a
presença de representantes da OAB e da Defensoria Pública da União.
Isto após ter realizado, ainda no dia anterior, uma esdrúxula
reunião com diretores de alguns centros acadêmicos (?!), escolhidos
entre os que lhe são próximos, pois a entrada de vários outros foi
mesmo barrada no clima de fechamento e truculência que tomou conta
do Palácio Cristo Rei; ter ido ao bispo em comitiva, incomodado com
a nota expedida pela Comissão Arquidiocesana Justiça e Paz,
ressaltando que os direitos são geralmente fruto de lutas; e de ter
insistido na realização de uma reunião prévia com a defensoria
pública. Enquanto buscava apoio sem sucesso, dezenas de declarações
favoráveis à luta dos estudantes começaram a circular, vindas não
só de diretórios acadêmicos, mas de núcleos de estudos,
pesquisadores, professores, departamentos e outros, na esfera
acadêmica, além de várias manifestações de solidariedade por
entidades da sociedade civil.
O resultado da
reunião com os estudantes das casas de moradia foi um fracasso, pois
a decisão de não entregar o prédio já estava anunciada, uma
posição típica de quem não sabe dialogar. Em troca do fim da
mobilização, o reitor propôs, então, que outro prédio fosse
construído no campus, com a promessa de apresentar um projeto em 60
dias e a partir daí buscar os recursos necessários. Ora, para quem
vem sendo levado na conversa há tanto tempo e depois de ocupações
de reitoria, termos de compromisso etc. viu tudo virar nada por
determinação pura e simples do reitor, como aceitar tal proposta?
Como trocar o sacrifício brutal a que vem sendo expostos seus
colegas em greve de fome e todos eles numa mobilização difícil e
cansativa, por uma nova promessa de quem teve anos para efetivar uma
decisão herdada da administração anterior e do conhecimento de
todos, mas sempre criou desculpas e empecilhos para concretizá-la,
simplesmente porque tem uma avaliação, exposta sem maiores
considerações na coletiva, de que “não é conveniente” a
presença permanente de alunos no campus?
O próximo passo do
reitor, após o fracasso da reunião, foi convocar uma nova
entrevista coletiva para anunciar a sua decisão de baixar uma
resolução determinando que a casa para a moradia estudantil seja
construída no campus. Ou seja, ele toma mais uma de suas decisões
solitárias, impondo o que foi recusado na reunião como forma de
“solução” do conflito e vai para a mídia apontar os estudantes
como intransigentes. Tal decisão não soluciona nada, apenas agrava
e acirra o impasse.
A intolerância às
posições divergentes, tão arraigada nesta administração, teve um
ponto alto de demonstração num manifesto assinado pela Pró-Reitora
de Gestão e Finanças, onde o protesto dos estudantes é
desqualificado como fruto de manipulações por entidades de classe e
partidos políticos. O texto, postado no facebook no dia 3, pode ser
classificado, sem nenhum exagero, de Manifesto da Truculência. Não
demonstra nenhuma preocupação com a situação dos manifestantes,
inclusive reclamando que um leito do Hospital Universitário estaria
sendo ocupado para atender a um “capricho” (pasmem!) de um
estudante. Fora isto, e em caixa alta, frisa que a folha de
pagamentos pode ter problemas se continuarem os protestos na entrada
do campus. A que se deve uma observação tão fora do objeto em
discussão? Criar alguma antipatia dos professores, sempre apertados
em seus rendimentos, ao movimento? E esta coleção de despautérios
termina ainda falando em democracia e diálogo...
A questão que se
coloca de forma cada vez mais urgente é se a comunidade
universitária ficará refém da intransigência de um reitor
acostumado a dar a palavra final sobre tudo ou se colocará
firmemente ao lado dos estudantes, levando a administração a tratar
o caso com mais realismo, reconhecendo as necessidades urgentes
denunciadas e ampliando o acesso à moradia estudantil. É até
ridículo afirmar que a UFMA possui mais de vinte mil alunos com
matrícula presencial e apenas três casas velhas no centro da cidade
como moradia estudantil, atendendo a menos de cem pessoas. Nos campi
do interior do estado, os relatos indicam que a situação também é
crítica.
Na ação
desesperada de alguns estudantes, com todas as dificuldades que
enfrentam para se manter na universidade, está a possibilidade de
resgatar um mínimo da autonomia tão violentada nos últimos anos.
Para isto, é preciso insistir que esta não é uma questão isolada,
mas o fruto recorrente de uma maneira de administrar totalmente
anacrônica. O impasse em torno da moradia estudantil diz respeito a
todos, principalmente pela forma como foi gerado e tem sido
encaminhado. Não é possível manter o cotidiano como se não
estivesse acontecendo nada, enquanto alunos se acham acorrentados em
greve de fome. Lavar as mãos diante disto é sancionar não só o
autoritarismo sem freios da administração do reitor Natalino
Salgado, mas aceitar passivamente a barbárie que se desenrola hoje
dentro do campus da UFMA.
Enquanto a
comunidade universitária ainda vacila, Daniel Fernandes foi
recolhido ao ambulatório na entrada do campus e um terceiro aluno,
Rômulo Santos, iniciou também a greve de fome. Será que vamos
esperar o drama se transformar em tragédia?
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