DEPOIS
DA MPM
Flávio
Reis
Nos últimos tempos novos
trabalhos sobre música popular e identidade cultural no Maranhão
vão recolocando um tema que se tornou, aos poucos, incômodo entre
os músicos e controverso entre comentaristas, apesar de
relativamente aceito entre radialistas e produtores locais: a
categoria música popular maranhense ou MPM. Uma referência
obrigatória encontra-se ainda em 2004, no debate entre Ricarte
Santos e Chico Maranhão, em dois artigos claros e densos, onde se
colocou, de um lado, a inadequação restritiva do termo, utilizado a
partir de meados da década de 80, considerado apenas uma receita de
sucesso atrelada à estetização de ritmos populares com que se
tentou reduzir a produção musical do Maranhão; de outro, foram
enfatizadas as condicionantes históricas que teriam propiciado o seu
surgimento, o sentido da “construção de uma canção maranhense
moderna”.
Nas palavras do próprio Chico
Maranhão: “Naquele momento, a afirmação de nossa identidade era
mais importante, e a música popular um veículo significativo,
embora naquela época inconsciente. (...) Isto continha um enorme
peso estimulador criador na época. Demos a cara pra bater e
ascendemos (sic) a fogueira que ainda hoje se vê a brasa arder.
Éramos muito jovens e necessitávamos responder às ressonâncias
que pairavam nos céus do país. Desta forma, qualquer análise sobre
esta sigla MPM tornar-se-á vã se não tivermos clareza desses
aspectos mórficos históricos de sua ‘adoção’”.
Em 2005, Roger Teixeira
apresentou a monografia Xô
do Mato, Boca de Lobo e Rabo de Vaca: a trajetória da música
popular maranhense nos anos 70.
Trabalho direto, sem trololó acadêmico, escrito acima de tudo por
um ouvinte e admirador confesso dos compositores em questão, coloca
de maneira sucinta, mas informada, praticamente todas as figuras em
cena, com algumas histórias ótimas, daquelas de algibeira, onde
afloram traços pessoais e situações emblemáticas do período.
Ao final, o autor afirma que as
experiências ocorridas mais ou menos no mesmo momento no Ceará
(Fagner, Belchior e Ednardo), no Recife (Alceu Valença, Geraldo
Azevedo, Zé Ramalho) e na Bahia (Novos Baianos), além de Minas
(Clube da Esquina), foram incorporadas à chamada MPB, tendo seus
artistas rumado para o grande centro, o que não ocorreu no caso da
geração laborarteana, seja por questões financeiras ou por
convicções pessoais, pois “ir para o centro do país seria
concordar que fazer música no Maranhão não poderia dar certo”.
O passo seguinte foram as
monografias de músicos participantes do Rabo de Vaca. Em 2010, o
trabalho do baixista Mauro Travincas, Rabo
de Vaca: memória de uma geração musical,
onde recupera a trajetória do grupo fundamental que existiu entre
1977 e 1982, capitaneado por Josias Sobrinho, dando continuidade nas
experiências com ritmos e melodias levadas a efeito no Laborarte em
meados da década e com uma postura decidida de tocar em praças e
espaços comunitários na periferia, não ficando preso a
apresentações em teatros. Curiosamente, o único show realizado no
principal palco da cidade, o Teatro Arthur Azevedo, seria também o
último do grupo.
Em 2011, o trabalho do flautista
José Alves Costa, A
Música Popular Produzida em São Luís na Década de Sessenta do
Século XX, sobre o
momento anterior ao Laborarte, quando a cena musical da Ilha era
dominada pelos programas de auditório, no rádio e depois na
televisão, e os grupos de acompanhamento eram no estilo “regional”,
com violões, cavaquinho, baixo, percussão e algum instrumento
solista, como o sax. Um pouco depois, conjuntos de baile, com
formação básica dos grupos de rock, guitarras, baixo, bateria e
teclados, como Nonato e Seu Conjunto e Os Fantoches, com vasta
influência da Jovem Guarda, mas também de toda tradição dançante
dos boleros e outros ritmos com toques caribenhos.
No ano passado, foi a vez da
monografia de Josias Sobrinho, Aquém
do Estreito dos Mosquitos: a música popular maranhense como vetor de
identidade. Para o
compositor, a construção da música popular maranhense significa a
inserção de sua cultura de raiz popular no universo da música
popular brasileira, ou seja, os ritmos do bumba boi, principalmente,
transplantados para o universo da produção musical brasileira. Em
nota indica que “o site de vídeos on line YouTube incorporou o
gênero ‘boi music’ entre as categorias disponíveis para a
classificação de vídeos enviados pelo usuário da plataforma”. A
consagração do gênero bumba-meu-boi como categoria musical estaria
no disco Bandeira de Aço, gravado pelo percussionista e cantor
Papete, em 1978, com composições de Cesar Teixeira, Josias
Sobrinho, Sérgio Habibe e Ronaldo Mota.
As células rítmicas do boi e do
tambor de crioula e sua utilização nas composições é apontada
por Josias como elemento distintivo e acompanhada em sua dificuldade
de transposição para o disco desde os anos 60. Por exemplo, a toada
de tambor de crioula Sanharó, de João do Vale e Luiz Guimarães,
gravada por Marinês e Sua Gente, em 1963 ou a conhecida música
Tambor de Crioula, de Cleto Júnior e Oberdan Oliveira, gravada por
Alcione Nazaré e pelo Nonato e Seu Conjunto. Cleto Júnior explica:
“ela não tem a pegada do tambor ainda... ela tem a letra do
tambor, ela tem a ideia do tambor, ela tem a homenagem do tambor, ela
tem aquela coisa toda do tambor, os versos do tambor (,,,) mas o
acompanhamento não tinha ideia de como fazer”. O ritmo terminava
sendo levado com toque de umbanda.
Em outros momentos a dificuldade
já tinha se colocado. Na gravação do disco do I Festival da Música
Popular Brasileira no Maranhão, na Toada Antiga, de Ubiratan Souza e
Souza Neto, realizada sem o acompanhamento percussivo do bumba boi ou
em Cavala Canga, de Sérgio Habibe, ritmo do tambor de mina, gravada
no primeiro disco do Nonato e Seu Conjunto, em 1974, também com
tratamento diferente da forma original.
Essa questão de trazer a rítmica
para dentro das canções gravadas só seria resolvida com Bandeira
de Aço, fruto direto da estética trabalhada pelos compositores no
Laborarte e o disco Lances de Agora, de Chico Maranhão, que expressa
uma aproximação de seu trabalho com as “influências de berço”
(os ritmos do boi e do tambor de crioula). Depois disso, “daí em
diante outros artistas e álbuns, com alguma relação com a cultura
popular de raiz maranhense, foram sendo colocados no mercado
nacional”, citando Papete, Ubiratan Souza, Tião Carvalho, Betto
Pereira, César Nascimento, Mano Borges, Alê Muniz, a dupla
Criolina, Flávia Bittencourt e “Rita Ribeiro e Zeca Baleiro, que
sempre apontam em suas produções um elo qualquer de identidade
maranhense”.
Em setembro de 2011, publiquei no
jornal Vias de Fato um longo artigo, posteriormente incluído no
livro Guerrilhas,
abordando, a partir das questões colocadas nos textos de Ricarte e
Chico Maranhão, o mal-estar e mesmo a indefinição e o
desconhecimento que cercam a sigla MPM, pois indicava algo que
parecia existir quando ainda não havia sido nomeada (década de 70)
e se tornava uma incômoda indagação depois de batizada (década de
80). Afinal, quem além de nós utilizava ou compreendia o que era
MPM?
O artigo acentuava a visível
distinção do período de gestação, marcado pelo cruzamento das
experiências dos três compositores que participaram do Laborarte
(Cesar, Josias e Sérgio) com figuras também exponenciais no
processo, como Chico Maranhão, Giordano Mochel, Ubiratan Souza,
Chico Saldanha, do momento seguinte, quando a rádio Mirante FM
estava no centro de uma estratégia de propagação do que se
passaria a chamar de MPM, trazendo uma nova geração de
compositores, entre eles, Gerude, Godão, Mano Borges, César
Nascimento, Tutuca, Carlinhos Veloz.
Ao contrário das linhas de
continuidade, era enfatizada uma descontinuidade em relação ao
empuxo inicial, tendo a aproximação com as agências governamentais
e com o mecenato privado se verificado segundo os esquemas de
patronagem de uma ordem social e política ainda em larga medida
oligárquica, por onde terminariam se enredando quase todos os
compositores, os novos e a maioria dos antigos. O texto, não por
acaso, intitulava-se Antes
da MPM, para enfatizar
o momento da década de 70 e início dos 80, quando a sigla não
existia. Soava, ao mesmo tempo, pois, como elogio e crítica.
O ataque que essa ambiguidade
carregava não só à utilização do termo, mas ao próprio estatuto
da coisa, colocada como uma experiência interrompida e
redirecionada, resultando em pouco tempo numa projeção
fantasmagórica sobre os músicos e a própria música que
realizavam, não passou totalmente despercebido e foi objeto de um
comentário de tom enviesado, meio truncado, mas com uma observação
importante. Intitulado Música
Para Maiores, de
autoria de Lane Mosi, foi publicado no mesmo jornal Vias de Fato, na
edição seguinte, de outubro de 2011.
Em linhas gerais, diz que o
artigo estava “perfeitamente enquadrado nos moldes históricos –
sociais – científicos da sociedade vigente” por comungar de uma
mitificação da ação do Laborarte, principalmente na questão das
experiências “para criação de uma determinada categoria de
música maranhense elitizada”. Alertava então: “É evidente que
a periferia a qual me refiro não é composta por aquele bairro
privilegiado, pela sua localização estratégica perto dos casarios
antigos, tão pouco àquele cheio de afilhados culturais, me refiro
mesmo, aos não tão distantes e nem tão abastados, mas totalmente
esquecidos e desconsiderados na influência da musicalidade desta
cidade”.
Para a autora, a periferia a que
o pessoal do Laborarte se articulava resumia-se ao Desterro e a Madre
Deus. Sem indicar qualquer referência, de ontem ou de hoje, afirma
que ¨existe todo um potencial na periferia que consegue escapar à
‘estratégia governamental de mercantilização da cultura’ mas
que é renegado a (sic) pelo menos 30 anos, pouco tempo
cronologicamente mas uma eternidade em se tratando de uma arte para
libertar”. Surpreendentemente, no entanto, termina o texto falando
em reviver os “momentos áureos da música maranhense que tanto
gosto”, depois de exaltar programas de rádio com “o melhor da
MPM” e “os bolachões (vinis) do Festival Viva”.
Afora o evidente desconhecimento
do que foi a atuação do Laborarte, principalmente até o início
dos anos 80, minimizando totalmente seu significado cultural e
político, pensando o que ele era a partir do que se tornou, e a
percepção do momento de diluição como se fosse o “momento
áureo” (aí é aquela história, cada qual com seu ouvido...), o
texto deixa a observação de que a incorporação da periferia na
cultura da cidade ainda não se deu ou seria bastante incompleta,
muito seletiva, não aceitando o marco que geralmente é atribuído
ao Laborarte. Este momento ainda seria um porvir.
No ano seguinte, Ricarte Almeida
Santos volta ao tema, desta vez através de uma dissertação de
mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Sociedade e
Cultura, da UFMA, intitulada Música
Popular Maranhense e a Questão da Identidade Cultural Regional.
Temos aqui um trabalho mais circunstanciado, com utilização de
todos os textos então existentes, destacando trechos e depoimentos
com argúcia, além de sua própria pesquisa, trazendo novos e
interessantes depoimentos de músicos e jornalistas. De forma geral,
define dois períodos: o de surgimento da música popular maranhense,
na década de 70, e o de sua inserção nos mecanismos da “indústria
cultural”, na década de 80.
O Laborarte teria configurado uma
“ação cultural”, um processo “com início claro e armado, mas
sem fim especificado”, onde avulta o papel dos agentes ou
mediadores culturais, indivíduos que “num ambiente de
heterogeneidade sociocultural, de preconceitos, cumprem uma ação de
aproximação de grupos sociais, de pessoas de diferentes
procedências”. Uma ação pensada para a prática de um novo
teatro, terminou tendo numa nova estética musical seu resultado mais
duradouro e “consequentemente, contribuiu decisivamente para a
assimilação das expressões e manifestações da cultura popular,
até então marginalizadas e negligenciadas, como símbolos da
identidade cultural regional”.
Apesar de citar e conhecer todos
os nomes principais que estavam envolvidos com a música popular nos
anos 60 e 70, Cesar Teixeira, Josias Sobrinho e Sérgio Habibe são
considerados “os três principais agentes culturais do
desenvolvimento da música popular maranhense”. O disco Bandeira de
Aço é colocado no texto como “marco de partida e de chegada” da
MPM. Num dos vários trechos destacados de um rico depoimento, Cesar
diz: “Bandeira de Aço é uma consequência do que foi
sistematizado no Laborarte” (...) “esse paradigma musical incluiu
ritmos de bumba-meu-boi, divino, tambor de crioula e de mina, entre
outros, caracterizando-se como música percussiva e adotando uma
poética enriquecida pelo vocabulário popular”.
Ou ainda, de forma mais precisa:
“creio que o Laborarte serviu como um ponto de referência para a
difusão de uma música popular que já vinha sendo gestada antes
mesmo da criação dessa entidade cultural. Foram acrescentadas novas
células rítmicas à MPB local, deixando transpirar as virtudes
artísticas da nossa gente, das nossas raízes culturais. (...) No
ponto de convergência estava a estratégia para a superação das
dificuldades, habilitando uma essência rítmica – com base
harmônica de violão e cavaquinho – alicerçada por instrumentos
regionais: matraca, tambor-onça, pandeiro, cabaça, agogô, abatá,
terno de crioula, pífaro etc.”
No capítulo seguinte, é olhada
mais de perto, com depoimentos esclarecedores, a questão da criação
da sigla a partir da ação decidida de Fernando Sarney em promover a
“música maranhense”, através da Mirante e de sua posição como
diretor da Cemar. É o momento da estetização, que define ao mesmo
tempo uma expansão e a descontinuidade no movimento artístico, pois
“a música popular em si, se reorienta em vista também de obter o
apoio e a legitimação do campo político”.
Ricarte é um conhecedor de
música popular brasileira, de suas raízes no choro e no samba,
apreciador e incentivador dos compositores maranhenses, além de seu
texto ter objetividade e fluência, oferecendo-nos, sem dúvida, uma
rica análise do momento. Da sua exposição discordo, no entanto, da
centralidade excessiva dada ao Laborarte (lembro, é claro, da
observação feita por Lane Mosi, aproveitando-a em outro sentido),
basicamente em dois aspectos.
De um lado, a própria definição
da estética musical em questão, que passa, a meu ver de maneira
significativa, por outros compositores, já indicados. Ameniza essa
discordância o fato de que estamos falando de um movimento (ou de
uma ação) cuja proposta inicial era de uma integração entre
campos distintos e aberta a influências diversas. De outro, acho que
a ação do Laborarte deve ser enfocada mais incisivamente como um
dos elementos de um processo mais amplo de redefinição da
identidade regional, a passagem da exaltação do passado letrado,
centrado nos mitos de distinção expresso nas alegorias da Atenas
Brasileira e da Fundação Francesa, para a exaltação da cultura
popular, principalmente do bumba-meu-boi, antes excluído e alvo de
perseguições. Algo que se efetivou mais como superposição, dado a
direção do processo pela oligarquia dominante.
Claro que isto está referido lá,
Ricarte sabe das coisas, mas um trabalho importante como o de Lady
Selma Albernaz, O
“Urrou” do Boi em Atenas: instituições, experiências culturais
e identidade no Maranhão,
uma tese defendida em 2004 na Unicamp, favoreceria o olhar para o
movimento que se efetuava no campo das instituições governamentais
em torno da cultura popular e do turismo desde o final dos anos 60.
Assim, o encontro posterior com o guarda-chuva da oligarquia não era
propriamente entre elementos estranhos.
O que se perceberia com clareza a
partir daí era que o sentido da “ação cultural”, para manter o
conceito utilizado, foi redirecionado para a ênfase na carreira
profissional, aproveitando os caminhos que se ofereciam através dos
favores oficiais. De maneira emblemática, o coletivo que se
sobressaiu a partir do final dos anos 80 foi a Companhia Barrica,
cujas principais atrações eram o Boizinho Barrica, no São João e,
depois, o bloco Bicho Terra, no carnaval.
Ambos eram fruto principalmente
da ação do compositor Godão na Madre Deus. No Boizinho Barrica
elabora uma recriação cujos ritmos envolvem os vários sotaques do
boi, os ritmos dos tambores de crioula e de mina, as ladainhas do
Divino e até as batucadas dos blocos e tribos de índio do carnaval.
É uma tentativa de síntese de vários elementos da cultura
maranhense, da música, das danças, do artesanato etc. A Companhia
tentou se colocar como movimento, mas terminou se definindo mesmo
mais como atuação de empresa e desencadeou toda uma enorme
discussão à época sobre grupos “parafolclóricos”. A outra
ponta era a Marafolia, uma empresa de eventos vinculada ao Sistema
Mirante, responsável pelo carnaval e as festas juninas “fora de
época”, ambas com intensa participação da turma do Barrica. Para
estes, a década de 90 significou os anos dourados.
No final do ano passado, mais um
trabalho tocou na questão da formação da MPM e, desta vez, por um
ângulo inusitado. Trata-se do livro de Bruno Azevêdo, Em
Ritmo de Seresta: música brega e choperias no Maranhão (Edufma,
2014), também fruto de uma dissertação de mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais, da UFMA. Inicia
com uma relação entre a crise nas bandas de baile, determinada pelo
aparecimento dos teclados eletrônicos polifônicos e a criação de
um novo estilo, uma corrente da música brega que se desenvolveu nas
regiões norte e nordeste a partir do final dos anos 80, conhecida
como “seresta”. Muitos músicos migraram para o teclado com
programação, pois barateava o show, eliminando instrumentos, como
baixo e bateria. Era uma modificação na técnica acarretando
alterações no estilo. “Músicos que por anos tocavam diversos
instrumentos passaram para o teclado com programação, músicos que
nunca cantaram passaram a emprestar sua voz para as serestas”.
O texto, bem articulado e
bastante informativo, penetra fundo no universo das choperias, tendo
como campo privilegiado duas grandes, a Choperia Marcelo, no retorno
da Forquilha, e o Kabão, no Aterro do Bacanga. Bruno aqui está à
vontade, passeando entre os nomes de destaque e suas imensas
discografias, as nuances de estilo, a produção dos shows, o mercado
de discos (que se apoia justamente na “pirataria”, subvertendo a
lógica das gravadoras), o público consumidor etc. Consegue
depoimentos incríveis de músicos, desencava vasto material
fotográfico que traz muito do espírito do tempo, explorando as capa
dos discos, os instrumentos e cenas de palco. Conta ainda com um
ensaio do fotógrafo Márcio Vasconcelos, em flagrantes de campo,
descortinando as cores, gestos e expressões em torno dos ritmos da
seresta. A edição, vale frisar, é caprichada em seus detalhes,
além de vir acompanhada de um cd. Tudo com a cara da Pitomba!
(apesar de carregar o signo da Edufma, cujo padrão é justamente o
oposto...).
Depois de analisar um estilo
musical que alicerçou o boom das choperias e envolve milhares de
pessoas, Bruno volta sua atenção para a (in)visibilidade dessa
música e concentra-se na separação entre os músicos de seresta e
suas canções e o que se poderia chamar de “identidade musical
maranhense”, indicando a existência de uma marginalização nas
“esferas discursivas de poder”, tanto no plano do acesso a
financiamentos nos programas de cultura, quanto de legitimação nos
meios de comunicação, carecendo de “reconhecimento”, pois a
categoria não constaria nas listas de premiação, nem nos catálogos
de cultura.
O bolero, a música romântica de
“dor de cotovelo”, o brega, que dominavam as rádios, foram
taxados de “música de velhos” ainda nos anos 60 e, apesar de
constar das lembranças de formação de músicos e jornalistas,
seriam deslocados da receita de mistura que definiria a MPM nas
décadas seguintes. Nos seus próprios termos: “o processo de
construção da tradição da música maranhense, corre em paralelo
ao processo de exclusão de outros estilos e seus representantes”.
O brega, formaria então sua linhagem à margem do que era
reconhecido como “música maranhense”, dos grandes como Raimundo
Soldado e Adelino Nascimento, à reinvenção com Lairton e seus
teclados e depois continuando em transformação, com o aparecimento
do arrocha e outras fusões, em aproximação com o sertanejo e o
forró.
O trabalho dá uma guinada e
passa a discutir então o processo de definição da MPM. Novamente
nos deparamos com uma riqueza de depoimentos, até mais variados. O
desenho interpretativo, em sua armadura mais geral, é similar ao já
colocado, com a distinção de dois momentos, mas os detalhes levam a
resultados distintos. Bruno estabelece uma contraposição entre a
geração Laborarte e a geração Mirante. Enquanto a primeira
estaria voltada para a pesquisa, a postura política de combate e o
contato com bairros da periferia, a segunda centrava-se na busca do
apoio de mídia, na proximidade com os grupos dominantes e na
fetichização do registro fonográfico. Assim como no trabalho de
Ricarte, os dois momentos privilegiados para a análise são o disco
Bandeira de Aço e o aparecimento da sigla MPM.
No caso do disco e todo o
imbróglio que ele gerou, com o problema dos direitos autorais, da
omissão dos nomes nas rádios etc., existem depoimentos extensos de
Cesar e de Papete, botando os demônios pra fora mesmo, pois, como
diz este último, “é uma coisa que respinga até hoje, essa coisa
rançosa, uma pena porque é um disco tão importante”. O disco foi
gravado à revelia dos compositores, as músicas capturadas meio à
distância, de forma enviesada e depois conseguida a autorização,
apesar das resistências de Cesar e de uma certa desconfiança que
pairava no ar. Mas foi um sucesso e chegou a vender na época,
segundo Papete, 150.000 cópias.
Várias opiniões são reunidas,
todas considerando o trabalho como referência fundamental. Como bem
sintetizou Ribamar Filho, dono do Sebo Poeme-se, foi “a primeira
vez que a gente se ouviu”. Ou Zeca Baleiro: “Bandeira de Aço
foi um divisor de águas na música do Maranhão. Sei de cor e
salteado, de trás pra frente, ouvi demais. Pela primeira vez pudemos
ouvir em disco e com a qualidade de áudio (ao menos próximo) de um
disco de grande gravadora, os nossos ritmos e autores. (...). Aquilo
calou fundo na alma do maranhense. E abriu portas para que outros
artistas se aventurassem naquela seara. Já havia outros discos
feitos antes – Chico Maranhão etc. – mas aquele lá foi
certeiro. Conjugou a excelência artística com o poder de fogo
comercial”.
Quanto à questão da MPM, o
contexto mais atual que a cerca, marcado por um certo “toma lá,
que o filho é teu...”, ganha aqui contornos até mesmo hilários,
dependendo da perspectiva. No geral os depoimentos descortinam ainda
mais as engrenagens em operação, principalmente o papel da Mirante
e dos favorecimentos pessoais concentrados na figura de Fernando
Sarney. O radialista César Roberto, por exemplo, depois de dizer que
“Fernando era o pai da nossa música, né? O padrinho, o
‘paitrocinador’”, afirma que ele foi “um dos criadores dessa
expressão MPM”.
Pedro Sobrinho, também
radialista, não concorda: “Foram os próprios artistas que criaram
essa sigla, Betto Pereira, Gerude, acho que Godão do Boi Barrica
também. Hoje eles não gostam, mas ele foi um dos grandes
incentivadores. (...) Surgiu através dos artistas e a rádio
(Mirante) abraçou, também porque houve um boom lá pela década de
oitenta, um boom da música maranhense... foi a partir daí que
neguinho resolveu ‘não, a nossa música é a melhor’ e criou a
sigla, só que foi um grande, quer dizer, o tiro saiu pela culatra,
porque não existe, foi um tiro no pé”.
Betto Pereira, por sua vez,
devolve: “É do rádio. Não foi pelos artistas não. Rotularam pra
diferenciar, fazer uma diferença do que é a MPB e o que é a MPM...
Fez uma merda que até hoje a gente tá penando por isso, que eu não
sou artista do Brasil, sou MPM”. Essa relação de estranhamento
torna-se ainda mais curiosa com a afirmação de Papete, outra figura
emblemática da difusão dessa música, com vários discos tendo
compositores maranhenses como base, inclusive um deles intitulado
Música Popular Maranhense, que a certa altura diz: “MPM não
conheço não”.
Para Cesar Teixeira, “é uma
discussão que surge no rádio, na verdade nos bastidores da
Secretaria de Cultura, que eu acho que surgiu foi ali. Ou era pra
reinaugurar uma geração que não tinha pesquisado coisa nenhuma na
vida, tipo assim, legitimar uma geração que não foi lá na zona,
que não foi no bumba boi, não pegou em matraca, não sei o que, pra
legitimar o que eles tavam fazendo, e de repente vender aquele
produto, como se venderia o reggae e outras coisas. E mais uma vez
não deu certo”.
Bruno trata da programação das
rádios Mirante FM e Universidade FM e de como elas cuidadosamente se
apartaram dos boleros e do brega, envolvidas no processo de
construção da identidade musical local baseada no bumba meu boi e,
de forma mais ampla, representando-se como o moderno e conceitual. No
decorrer das entrevistas ele sempre se defrontou com a posição dos
músicos (de quaisquer vertentes) e dos jornalistas, todos contrários
ao estabelecimento de uma relação entre a “música brega/seresta”
e a “música maranhense”.
No modelo explicativo com que
trabalha, isso seria fruto da internalização por parte dos agentes
da construção da identidade musical maranhense como determinada
pela aproximação com a cultura popular, sustentada num processo
seletivo e excludente (“elitizante” é um termo várias vezes
utilizado - lembro novamente de Lane Mosi). A posição das rádios
seria, enfim, sintomática de uma “intenção de afastamento do
popular”.
A conclusão a que chega é
cruel, mas termina se tornando também uma caricatura do processo: “A
MPM seria assim, um arremedo de movimento centralizado na rádio
Mirante, que reuniu artistas de música popular inspirados no
folclore, com o intuito de criar um elemento distintivo para a música
dentro do mercado”. Para entender o que ele quer dizer é preciso
não esquecer a maneira como foi colocada a dinâmica do processo,
como dicotomia entre geração Laborarte e geração Mirante.
O termo geração Mirante é
ótimo, basta destacar um depoimento dado por Mano Borges para um
programa de televisão sobre os 30 anos da rádio, quando afirma: “30
anos que se confunde, na verdade, com a história da gente, da nossa
música. Eu acho que é uma rádio que foi pioneira em mostrar essa
música produzida no Maranhão, e isso nos deu muita visibilidade”.
No entanto, utilizá-lo como
Bruno faz, a geração Mirante e a MPM como signos intercambiáveis,
obscurece o trânsito que também houve da geração Laborarte para
dentro da esfera de influência da Mirante e das secretarias de
cultura. Talvez fosse mais simples falar, como Celso Borges,
simplesmente em 1ª e 2ª gerações da MPM. Neste caso, o cuidado é
para não esmaecer o fato crucial de que o termo é uma criação da
2ª geração, quando a produção já não guarda a mesma qualidade,
nem as mesmas características, voltando-se para o mercado
fonográfico e as rádios, na busca de uma inserção que tinha
ficado até então em segundo plano.
Por não se dar conta da rigidez
que o esquema explicativo continha, o texto chega ao final
escorregando em passagens surpreendentes ao afirmar que após o
estabelecimento da sigla pela ação da rádio Mirante, “músicos
da geração anterior como Sérgio Habibe passaram a ser reconhecidos
como MPM por mais que não tomassem parte ativa em suas engrenagens”.
Ou ainda: “Chico Maranhão se considera MPM, mesmo que a sigla
tenha surgido depois da maioria de seus discos”. Em suma, aí ele
opera uma disjunção total que torna a coisa toda um pouco confusa,
na medida em que passa a configurar quase a existência de dois
movimentos (mais do que dois momentos).
Não é possível dizer, por
exemplo, que pela filiação à Mirante esta geração “é
amplamente criticada pela geração anterior”. Salvo grosseiro
engano, o único nome da linha de frente que permaneceu à margem dos
canais que se formavam entre artistas, a Mirante e secretarias de
cultura, foi César Teixeira. Isso lhe valeu um certo ostracismo, uma
distância que funcionou ao mesmo tempo como sua maldição e sua
aura de identidade. Em graus variáveis, todos em algum momento
participaram dos pequenos canais que se formaram para a produção de
shows e gravação de discos de música popular. Basicamente era o
esquema de financiamento que se formou aqui.
O trabalho de Bruno vai além da
boa etnografia, ultrapassa a observação do fenômeno ao inquiri-lo
em sua forma constitutiva, enquanto categoria socialmente legitimada,
na trilha de Bourdieu, autor de quem pega as lentes para enquadrar os
depoimentos dos músicos e agentes de mídia. Analisa um processo de
construção simbólica e sua legitimação, insistindo na lógica da
exclusão e sua introjeção, através da naturalização de noções
como “cultura maranhense”, atrelando-a a um conjunto de signos
retirados da cultura popular, mas filtrados pelas elites, no sentido
mais preciso do conceito, portanto, incluindo o próprio Laborarte.
Penso que a coisa pode ser encarada de outra forma.
Como é sabido, a discriminação
acompanhou a música brega desde a formação do agregado que
responderia pela sigla MPB a partir da segunda metade da década de
60. E isto só recentemente começou a se romper. No entanto, esta
exclusão funciona mais como um recalque. E aqui não foi diferente,
pois não dá para dizer que elementos do bolero e do brega não
estão presentes na obra desses compositores, ontem e hoje. Me vêm
imediatamente músicas como o bolero Babalú, que abre Emaranhado,
de Chico Saldanha, seguido da cafonice fundamental de Mara, com
aquele órgão hammond lá no fundo, ou ainda bregas escancarados
presentes em seu disco anterior, Celebração,
como Baby e Telma e Louise. Cesar e Josias não têm influência de
brega? Acho que eles dificilmente negariam. Mas do velho brega, da
cultura da zona, como enfatizou o primeiro.
E nem teria como ser tão
diferente porque isso tudo rodava muito nas rádios. Quando Bruno
analisa a questão da programação das duas FM e, através de vários
depoimentos, mostra como o que era considerado muzak,
de mau gosto, “brega” (Waldick Soriano, Roberto Carlos, Agnaldo
Timóteo, Odair José ou Wando, por exemplo), não rodava, fala como
se não estivessem presente direto nas rádios AM. Isso não invalida
a percepção geral defendida no livro, principalmente a questão dos
modos de incorporação e legitimação que culminaram na invenção
midiática da MPM, mas abre um caminho para nuançá-la e olhar a
persistência desses elementos, que estavam introjetados e não
poderiam ser tão facilmente apagados.
Também na década de 80 a onda
do reggae se colocava com força e o ritmo terminou sendo absorvido,
não ficou à margem, passou a frequentar os discos dos compositores
maranhenses. E igualmente parece ter criado um nicho próprio, com
bandas, gravações etc. e ainda com a particularidade do negócio
das radiolas, mas hoje faz parte do cardápio oficial e é vendido na
prateleira da diversidade. O potencial de afirmação de diferenças
parece ter se diluído sob o guarda-chuva da “maranhensidade” e a
noção de Jamaica Brasileira foi incorporada de maneira a esvaziar o
potencial crítico da ordem social e cultural vigente.
Toda essa conversa pode parecer
uma ruminação de águas passadas, na medida em que o quadro atual,
à primeira vista, tem características muito distintas. É o que
pode ser percebido na leitura de dois instigantes e, até certo
ponto, antitéticos artigos a respeito do recente festival de música
do projeto BR-135 e seu significado no contexto das artes, publicados
em 27 de dezembro e 3 de janeiro últimos no Caderno Alternativo do
jornal O Estado do Maranhão. Refiro-me aos textos DR-135,
do mesmo Bruno Azêvedo e Não
há Saídas (só pontes, viadutos e avenidas): festival BR-135 e a
arte contemporânea do Maranhão,
de Reuben da Cunha Rocha.
Para encurtar o que já vai
longo, Bruno faz um comentário bastante elogioso do festival, por
expressar a diversidade atual das bandas e pelo local de realização
(a Praia Grande) e do projeto, por ser o resultado de uma “ação
política” dos produtores (Luciana Simões e Alê Muniz), que
indicaria “uma boa chance para mudança paradigmática dos
produtores locais”. A existência de uma ¨cena” artística em
plena ebulição, um modelo de produção viável e, por fim, a
“mudança política” anunciada são os ingredientes principais do
texto.
A questão a que o BR-135
apontaria uma “saída” é de como “fazer acontecer uma cena que
já acontece”, identificada por duas características: 1) “a
cidade anda cheia de bandas de estilos diversos”; 2) “essas
bandas tão (sic) interessadas num som autoral e desamarrado dos
medalhões de identificação da cidade/estado”.
Correlato a este processo, que
vem de algum tempo, ocorre agora a alteração política com a
derrocada do grupo que comanda o estado há décadas, abrindo
possibilidades de romper a “organização feudal” em que se
tornou a pasta da cultura. Para isso, diz, “espero muito que a nova
gestão consiga desfolclorizar a Secretaria de Cultura ou que aja uma
ação dos produtores nesse sentido”. E conclama os artistas em
geral a se inteirarem das possibilidades abertas com as leis de
incentivo e a “convencer as empresas da importância estratégica
do investimento na arte”. No horizonte, a aposta de que a
“efetivação de uma política pública para a cultura transparente
e impessoal”, seja uma alavanca para as atividades artísticas, um
caminho “em direção ao público, à cidade, ao seu próprio
ofício”.
O texto de Bruno é muito bom,
vibrante, tocando em várias questões referentes ao esgotamento de
um padrão de política cultural que vigora há décadas. Uma semana
depois recebeu um comentário forte de Reuben. Um artigo radical no
melhor sentido, opondo logo no título à “saída” do BR as
conexões das “pontes, viadutos e avenidas”.
No geral, ampliava o escopo da
¨cena¨ referida, recusando qualquer viés de apresentação do
festival como sua expressão. “O que discuto no texto de Bruno é a
tentativa de sequestrar, para sua formulação do BR-135, certos
traços da experiência mais ampla e mais ousada que tem borbulhado
na panela da ilha. Nessa jogada, ele esvazia os aspectos mais
radicais ou pelo menos mais inquietos”.
Reuben expõe a desconfiança com
um esquema voltado para a “profissionalização”, que estimula a
troca e a mistura, mas “capitaliza experiências radicais como se
fossem ‘cases de sucesso’”. Não é propriamente uma recusa,
antes uma observação que recupera a importância das formas de
agrupamento não marcadas pelo viés “empreendedorista” e sim
pelo caráter mais “autonomista e não hierárquico”, como a
experiência do Sebo no Chão, no Cohatrac, “que nunca deixa de
acontecer e se vale das melhores e piores condições com o mesmo
empenho”, ou a da Casa Loca, “que além de boa banda é uma casa
ocupada mesmo, e parece que é louca”.
Não tenho condições de
comentar o leque que ele apresenta do cenário contemporâneo das
artes na Ilha, mas mesmo para quem conhece tão pouco é possível
sentir os ventos e a energia que começam a despontar desses sons e
imagens, dessa nova gestualidade, do “trânsito de linguagens”,
claramente impulsionados por “dispositivos que apontam para a
autonomia: a capacidade de gravação, a coletivização do trabalho
produtivo, o domínio dos meandros da captação de recursos”.
Neste sentido, o chão da
experiência atual é realmente muito distinto, tanto no referente às
possibilidades de produção e circulação quanto aos desafios
estéticos e políticos a responder. Os anos 70 e 80 marcaram aqui a
passagem de uma configuração cultural caracterizada pelo predomínio
dos signos de erudição para a incorporação de signos extraídos
da cultura popular. Tal processo atingiria seus contornos mais
definitivos somente na década de 90, através da ação concertada
entre agências estatais e agências de comunicação, e terminou
propiciando um aprisionamento e até uma acomodação dos artistas. O
que se põe hoje é a necessidade de recriar os canais e ativar
outros para uma nova leitura da diversidade cultural, que não seja
refém de uma visão asfixiante da identidade e permita ao Maranhão
se ver refletido em outros lugares, além do casarão ou do bumba meu
boi. Para isso, mais do que (re)ler o local, a questão é como
absorver o estranho e deixar acontecer as vias de combinação, vale
dizer, de destruição das fórmulas de exaltação predominantes.
Para Reuben (no que Bruno
concorda), “uma evidente liberdade se coloca entre a geração mais
nova e os mais longevos fantasmas da cultura maranhense. Já quase
não se sentem os ecos de certa ideia de legitimidade antes
pretendida sobretudo através da cultura popular. O Maranhão, na
música mais nova que tenho ouvido, aparece em outro lugar”.
Liberados de qualquer “acerto de contas” com o passado, “afinal
os mitos deixaram poucos discos e tudo depende da memória
hiperbólica dos que lá estavam”, essa geração estaria de certo
modo, liberada de carregar o fardo da “preservação da cultura”,
abrindo espaço não só para um leque mais amplo de gêneros como,
principalmente, da perspectiva que ele se coloca, para a
experimentação mais radical e subversiva. Na formulação feliz: “O
jogo agora é com o estúdio e não com o histórico”.
O dilema é o que fazer com essa
“liberdade”, pois se é possível dispensar “a demanda dos
fantasmas históricos”, é necessário também fugir dos “acertos
do mercado nacional”, ou seja, do velho sonho de “estourar”. O
próprio Reuben alerta: “não adianta tirar onda dos velhos
medalhões para acabar refém de outros lugares de poder”.
Se não estamos mais na posição
de reféns da relação entre arte e cultura popular, é bom frisar
que isto se deu antes pelo desgaste da fórmula e pelas
possibilidades abertas com os novos meios de produção e comunicação
do que por qualquer diálogo crítico com essa “herança”. Não é
apenas “um papo desgastado entre nós”, como Reuben e Bruno
parecem concordar, é uma limitação que essa nova geração vai
carregar, apesar de ser também por onde vai tentar se livrar dos
“fantasmas da cultura maranhense”, que poderia sintetizar na
necessidade de ultrapassar a tônica do “Maranhão, meu tesouro,
meu torrão...”, o canto de sereia da ordem vigente.
Não me refiro, é claro, à bela
toada que Humberto deixou gravada na memória da cidade, mas ao
narcisismo ludovicense historicamente enraizado, que sempre deu o tom
de nossas mais duradouras representações e ajuda a entender como um
momento tão rico de transformação da música popular, capaz de
definir os contornos de uma estética regional na linha de
experimentações do período, desembocou na caricatura pretensiosa
que significou a sigla MPM.
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