segunda-feira, 3 de setembro de 2007

II ATO PÚBLICO CONTRA A VIOLÊNCIA E A IMPUNIDADE

CRIME E CINISMO
Por Flávio Reis


Os aparelhos repressivos do Estado no Brasil historicamente tiveram sua atuação marcada pelos abusos de poder tornados rotineiros. Formada numa sociedade extremamente desigual, a polícia manteve-se como instituição-limítrofe. Em sua face mais visível, a polícia deveria manter a pobreza à distância, garantir o usufruto dos principais espaços urbanos pelas classes médias e controlar as massas flutuantes, subempregadas ou desempregadas, das periferias. O combate ao crime era uma preocupação secundária. Criada, então, para a proteção de uma minoria, à polícia brasileira sempre faltou o compromisso com uma noção mais ampla de segurança pública. A truculência e a utilização seletiva da lei resultaram num padrão de policiamento a que se associou uma imagem essencialmente negativa.

Envolvida em redes de criminalidade múltiplas, a própria polícia se tornaria parte fundamental do problema da violência no país. As práticas repressivas ilegais correm à solta, muitas vezes com o apoio surdo de parcelas da sociedade que, assustadas com os índices de violência, só vêem como recurso imediato o uso de mais violência. Numa sociedade em que a limitação da lei sempre é para o outro, em que o “jeitinho” tenta se diferir do crime e a impunidade é um desfecho comum para os apanhados em infração, geralmente a autoridade investida é a primeira a se colocar acima da lei. Este comportamento, encontrado nos mais variados campos de atividade, no caso da polícia e seu corpo de funcionários armados torna-se muitas vezes letal. A mortandade é computada como fruto de “confrontos”, “resistência à prisão” e outras expressões comuns ao jargão policial, empregadas na maioria das vezes para ocultar o puro extermínio. Policiais e bandidos mergulham assim na mesma lógica da vingança e dos assassinatos diários, da extorsão e do roubo. Muitos se referem à “banda podre” da polícia, mas talvez a criminalização da instituição tenha raízes mais fundas. A impunidade dos atos de violência abusiva faz parte de uma cultura com apoio nos comandos.

No Maranhão, estado onde a moldura do poder oligárquico conseguiu atravessar o século sem grandes alterações, a polícia, militar ou civil, sempre esteve perpassada por interesses políticos e pronta a submeter-se às vinganças privadas que passam ao largo do sistema judiciário. Que o momento é urgente o mostram claramente três rumorosos casos em andamento. A morte do prefeito de Presidente Vargas, o Bertim, comprovadamente executado por policiais militares, em crime cuja rede de envolvidos chega ao ex-comandante do policiamento metropolitano. A tortura e assassinato do artista Geremias Pereira da Silva, o Gerô, espancado cruelmente por policiais militares à luz do dia e com várias testemunhas. Agora, o assassinato do professor Flávio Pereira por um comissário de polícia civil, após discussão de trânsito, a poucos metros de um Box e uma viatura da PM. Seja na forma de grupo de extermínio, da violência ilegal praticada nas “operações de rotina” ou como solução de força para um conflito pessoal, a figura do policial se confunde com a do exterminador.

Como é da tradição, as justificativas dadas pelos envolvidos estão largamente apoiadas no cinismo e na conivência esperada junto aos pares. Os policiais que mataram Gerô o teriam confundido com um “suspeito de assalto” e por causa da sua “resistência” foram “obrigados” a usar da força. E o espancar até a morte? Já o comissário Olivar Aguiar Cavalcante, lotado no 4º DP, alega que atirou em “legítima defesa”, pois teria sido agredido. Mas o fez de dentro do carro, com a vítima a uma certa distância, não correndo, portanto, nenhum risco de vida - mesmo assim não hesitou em atirar num homem desarmado. A inoperância e/ou conivência dos policiais militares presentes no local, que não tomaram nenhuma providência para deter o comissário, os tornaram meras testemunhas prontas a afirmar a idéia cínica da “legítima defesa”. O policial civil fugiu do local do crime, tratou de mandar o carro para o interior, tirou o bigode, aparou o cabelo e continuou a trabalhar normalmente até ser preso no correr das investigações. Agiu como bandido. Passou, então, cinco dias detido e já se encontra em liberdade. Acostumados a resolver os conflitos atropelando, intimidando e matando, tais agentes da segurança acham-se acima da lei. Confiam na tradição da impunidade.

O programa da atual Secretaria de Segurança Cidadã, que ganhou um alarde de pioneirismo nacional quando do lançamento do PRONASCI, tem entre seus objetivos aproximar o policiamento da comunidade, o que implica em transformar a formação profissional e fortalecer os órgãos de corregedoria, no sentido de coibir os abusos e garantir a submissão da ação policial à lei. Diante da situação atual, a tarefa parece realmente um desafio muito difícil. De qualquer forma, se a mudança de valores é um projeto de longo prazo, é preciso mostrar imediata determinação política de controlar a violência policial utilizando os mecanismos existentes. E isso diz respeito a todos os poderes. No descrédito geral em que as instituições afundam, gestos desesperados como a greve de fome do promotor Benedito Coroba são um grito contra a velha ciranda da impunidade que nos agride mais uma vez com sua gargalhada cínica (e assassina).


Fotos do Ato Público contra a Violência e a impunidade realizado na Praça Deodoro, sexta-feira, 31 de Agosto de 2007.

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