quarta-feira, 30 de abril de 2008

Software livre, pós-capitalismo e... negócios

Encontro da comunidade brasileira ligada ao GNU/Linux reúne público recorde, confirma papel destacado do país na luta pela liberdade de conhecimento e revela: é possível ganhar a vida, criar e empreender praticando uma lógica oposta à da propriedade privada e do interesse egoísta

Débora Pinheiro

De 17 a 19 de abril, em Porto Alegre, o 9º Fórum Internacional Software Livre – FISL 9.0 – reuniu mais de 7,4 mil participantes de 21 países no Centro de Eventos da PUCRS. Desavisados encarariam o evento como um encontro de nerds e fissurados por jogos, acessórios tecnológicos e programas de computador que quase ninguém usa. Ledo engano: no FISL, o maior encontro da área de tecnologia da informação na América Latina, a escolha pelo código aberto revela-se muito mais estratégica do que meramente técnica.

Ao confirmar o Brasil na posição de líder latino-americano no uso, no desenvolvimento e na disseminação do software livre, o 9º FISL mostrou que o código aberto é um potente denominador comum entre hackers, gestores do governo, pesquisadores, empresários e militantes de esquerda no País e no cenário internacional. O clima descontraído do evento, em que os hackers fizeram a festa, crianças circulavam com seus XO, representantes de movimentos sociais se manifestavam e um mestre de cerimônias vestido de pingüim fazia pose para todas as câmeras deu a muitos jornalistas a impressão de que o público se compunha maciçamente de estudantes. Mais um engano: os números consolidados do FISL 9.0 mostram que profissionais e empresários foram o público principal do evento, representando 73% dos participantes.
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"Encontro da comunidade brasileira ligada ao GNU/Linux reúne público recorde"

Para além da possibilidade de ter acesso ao código do programa que se usa, o lema da comunidade do software livre é compartilhar conhecimento e informação. Esse é o ponto de partida que fez o FISL deslanchar desde 2000, e atingir público recorde em 2008. Atraindo atores importantes entre os que constroem e os que decidem sobre o uso do software livre, a nona edição do FISL acaba de confirmar que no Brasil a opção pelo código aberto consolidou-se em setores que se complementam: governo, comunidades da área de desenvolvimento de softwares e mercado. Por paradoxal que pareça, o evento impressionou pela presença de pesos pesados da indústria da informática e da tecnologia da informação, associados em sua maioria ao software proprietário. UOL, Terra, Telefônica, Google, Globo.com, Intel, Sun Microsystems e Yahoo Brasil foram algumas das empresas que participaram do evento, comprovando que o software livre provocou transformações importantes no mercado.

Não há nenhuma contradição em usar o software livre para fazer dinheiro, dizem os empresários que circularam pelos stands do FISL 9.0. Esse é também o ponto de vista do diretor sênior de estratégias para governo da Sun Microsystems nas Américas, Luiz Fernando Maluf. Para ele, a opção pelos sistemas abertos é um modelo de negócios. "Posso provar matematicamente que funciona", diz, dando como exemplo o programa aberto Java, criado pela Sun e que conta hoje com cerca de 30 milhões de desenvolvedores espalhados pelo mundo. A seu ver, a Sun não atingiria o patamar atual – a companhia conquistou o terceiro lugar no mercado global de servidores – se tivesse optado por obter lucro em cima de registro de patentes. Ele explica que o envolvimento de tanta gente com o programa reduz o custo do desenvolvimento e acelera a chegada de cada novo produto ao mercado. O diretor sênior de estratégias para governo da Sun Microsystems nas Américas considera que o modelo de negócios baseado no registro de propriedade intelectual está com os dias contados.
Alternativa à propriedade intelectual: é possível ganhar dinheiro com software livre. Mas o conhecimento é livre. O que cada um desenvolve, a todos pertence

O novo modelo, baseado em serviços e não mais em patentes explica o trabalho de sedução feito por grandes empresas, que aproveitaram o FISL para prospectar talentos da comunidade do software livre. "Desenvolvedores de software livre trabalham por paixão", descreve a administradora de sistema Unix Fernanda Weiden, 26 anos, que, ao fazer uma palestra sobre software livre na Alemanha, em 2005, recebeu uma proposta da Google, onde ainda trabalha. Nos stands das empresas, anunciam-se vagas dentro e fora do país. Graduação e familiaridade com interoperabilidade Windows/Unix são pré-requisitos incontornáveis, mas muitos desenvolvedores são contratados sem ter terminado o curso universitário. Ao que as empresas consultadas no evento indicam, os salários para desenvolvedores oriundos do software livre são mais interessantes. Um jovem profissional em início de carreira pode começar ganhando R$ 4 mil.

Usuários de programas livres, com código aberto, têm a possibilidade de entender como funciona o programa e de alterar a área em que estão registradas as informações que fazem o programa funcionar — o chamado código-fonte. Empresas públicas e privadas podem ter, assim, controle sobre a tecnologia que usam, adaptando os softwares às suas necessidades específicas. Dessa forma, auditorias podem ser feitas com transparência e sem a intermediação de companhias que detêm as informações sobre o programa usado, e cobram caro pela licença para usar seus programas. A General Public License (GPL), que em português significa Licença Pública de Uso Geral, é a licença mais popular para software livre. Permite que qualquer um copie, distribua, modifique e estude um programa. A GPL também determina que nenhum usuário pode se apropriar das modificações que faz no programa. Melhorias são de uso comum e já não pertencem a ninguém. Dessa forma, a lógica do software livre faz a prestação de serviço valer mais do que o produto estanque.

"Vou contar para vocês por que o software livre vai vencer. Não se trata de saber se vai vencer, mas quando", avisa o presidente da Linux International, Jon "Maddog" Hall. Para ele, a queda dos preços dos computadores destoa do alto custo de softwares, que se tornam rapidamente obsoletos e cuja produção baseada no código fechado não consegue competir com os softwares construídos a partir de um modelo colaborativo. Hall percebe o desempenho do Brasil no desenvolvimento e na disseminação de programas em código aberto como fruto de um encontro feliz entre governo, indústria e a comunidade do software livre. Para ele, o Brasil é exemplar em se tratando de desenvolver soluções em larga escala com softwares de código aberto. Ele considera a Caixa Econômica Federal como um dos exemplos mais emblemáticos em se tratando de uso do software livre em larga escala na América Latina.

No Brasil, programas em código aberto vêm sendo adotados tanto em iniciativas públicas quanto no setor privado, afetando a vida até mesmo de quem não usa computador. Quem paga as contas ou vai fazer uma aposta usando terminais instalados nas Casas Lotéricas da Caixa Econômica Federal (CEF) está usando o sistema operacional o Linux, com a distribuição Debian. Saber isso não faz muita diferença, opina o gerente de tecnologia da informação Júlio Schneiders Neto, da Caixa. Para ele, o importante para o usuário é perceber que o uso do código aberto deixou os terminais mais ágeis e aumentou a qualidade das transações nos momentos de pico. "Antes de migraramos para o código aberto, uma transação durava em média 8 a 10 segundos. Agora, a média fica entre 3 e 4 segundos. Essa diferença representou, no ano passado, um incremento de 17% na quantidade de transações em todos os nossos terminais lotéricos", conta Júlio Schneiders Neto.
Órgãos públcios, grandes empresas privadas e estatais, entram na dança. A Caixa economizou 10 milhões e tornou-se muito mais rápida. E o software livre chega às urnas eletrônicas

Em 2006, a CEF livrou-se do monopólio da multinacional Gtech, prestadora de serviços que dominava o sistema de processamento de dados de nove mil loterias espalhadas pelo Brasil. A Caixa migrou todos os seus cerca de 25 mil terminais financeiros lotéricos — que executam também diversas operações bancárias — para o sistema operacional Linux. "Só com licenças coorporativas, que deveriam ser pagas pelo uso de softwares proprietários, economizamos cerca de 10 milhões de reais desde então", calcula o gerente de tecnologia da informação da Caixa Econômica Federal.

A partir das próximas eleições municipais, quem vota também estará usando software livre, já que a Justiça Eleitoral está migrando todas as 430 mil urnas eletrônicas do Brasil para uma distribuição Linux. Técnicos estão desenvolvendo uma distribuição Linux própria para uso nas eleições brasileiras, de forma a fazer com que o sistema fique mais seguro e possa ser controlado exclusivamente pela Justiça Eleitoral. A decisão de migrar para uma distribuição Linux visa atender a legislação brasileira, que determina o uso de tecnologia não proprietária em áreas estratégicas. Optar pelo código aberto também vai otimizar gastos para o Erário: o TSE estima que só nas eleições deste ano serão economizados R$ 4 milhões em licenças de software e contratos de suporte.

"O mal não está nos sistemas proprietários em si e sim no monopólio deles", ressalta o governador do Paraná, Roberto Requião. Ele anunciou durante o FISL que, dentro de um mês, a telefonia privada do Estado será substituída por um sistema que utiliza voz sobre IP e software livre por meio da infra-estrutura de infovias da Copel, empresa estadual de energia. O novo sistema de telefonia foi desenvolvido pela empresa de tecnologia do Estado, a Celepar, que promete uma velocidade cinco vezes maior na rede e um custo de manutenção cinco vezes menor. Com a medida, Requião estima uma economia de 100 milhões de reais por ano para o Estado do Paraná. Valendo-se de uma lei estadual que estabelece preferência por softwares livres nas compras do governo, Requião comemora o fato de 80% dos contratos do governo do Paraná envolverem software livre. Calcula que, no Paraná, 200 milhões de reais deixaram de ser gastos desde 2003 por causa da implantação de sistemas de software livre.

Paraná e Rio Grande do Sul são Estados pioneiros em se tratando da preferência pelos programas em código aberto, tendência na qual o governo federal está apostando, ao definir novas regras para contratar serviços no setor de tecnologia da informação. Uma instrução normativa em processo de consulta pública privilegia soluções livres, sua publicação e seu compartilhamento por meio do portal do software público. Enquanto isso, o governo não apenas usa, mas também disponibiliza soluções que envolvem programas em código aberto. Para o gerente de Inovações Tecnológicas do Ministério do Planejamento, Corinto Meffe, o governo brasileiro está atendendo a demandas reprimidas da sociedade, ao oferecer soluções e prestação de serviços com ferramentas do software livre no Mercado Público Virtual, inaugurado durante o FISL 9.0. No site, órgãos de governo, universidades, pessoas físicas e jurídicas poderão oferecer e adquirir softwares e serviços de treinamento. A intenção é oferecer um catálogo de prestadores de serviço para as 16 soluções livres disponíveis no Portal do Software Público.

Meffe menciona o sucesso do software livre Cacic, o Configurador Automático de Informações Computacionais, um programa que supervisiona e realiza auditoria nas máquinas do serviço público. "Trata-se da primeira ferramenta disponível no portal do Software Público Brasileiro e o primeiro GPL do governo", lembra. A ferramenta foi desenvolvida pela Empresa de Tecnologia e Informações da Previdência Social (Dataprev) e oferecida como um software público à sociedade pela secretaria de Logística e Tecnologia da Informação (SLTI) do Ministério do Planejamento. Com a versão GPL, ficou assegurado que a Dataprev é a mantenedora-raiz do software, tendo portanto direito de receber de volta todas as inovações que forem introduzidas pelos usuários. O Cacic tem agora mais de nove mil pessoas cadastradas e reúne mais de 730 prestadores de serviço, além de ter a participação de oito países e algumas prefeituras latino-americanas, como Montevidéu e Assunção.

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