- Por João de Deus Castro
Os primeiros ventos revolucionários do século XXI sopram do mundo árabe e causam tensão no resto do planeta. Milhões de pessoas vão às ruas e no curto pra\zo de cerca de 30 dias, na Tunísia e Egito, derrubam ditaduras, governos títeres dos EUA e Israel. Não há dúvidas, é de uma revolução que se trata. Revolução política bem entendido, ou seja, fortes abalos capazes de botar abaixo um tirano, reconfigurar as regras do jogo a partir de baixo e criar uma abertura democrática de participação mais ampla das massas no poder, com sérias repercussões sociais, econômicas e geopolíticas.
Não se trata de uma revolução social. Social em sentido forte, como usado em Lukács na expressão “ontologia do ser social”, que abrange o econômico, o político e o cultural. Não se trata daquele terremoto demolidor do sistema de relações sociais de produção que faz ruir todo o aparato superestrutural – político, jurídico e ideológico –, substituindo-o por um novo modo de produção da existência material de uma sociedade. Pelo menos por enquanto. O povo continua ocupando as ruas, num processo que se amplia a cada dia: Tunísia, Egito, Argélia, Iêmen, Bahrein, Marrocos, Líbia... “Não se cansem, não se cansem. A liberdade ainda não foi alcançada”, é o que grita um militante com um megafone, no meio da praça Tahrir (Liberdade), no centro do Cairo.
Tudo isso após um giro à esquerda que já dura mais de uma década na América Latina, onde governos de esquerda ou centro-esquerda conseguem propiciar mobilidade social dos mais pobres e mais independência frente aos governos dos países centrais.
Os países do centro do capitalismo já sentem a ferrugem lhes roer. A grande crise de 2008/2009 impactou com mais intensidade esse grupo. E, como saída, os governos optaram mais uma vez por preservar o grande capital, os causadores da crise, principalmente o financeiro, em prejuízo do mundo do trabalho e dos serviços públicos. E justamente por essa razão, uma nova crise se aproxima, é só uma questão de tempo. E, como sempre, esse processo não se faz sem atritos. Assim, ao mesmo tempo que a extrema direita recrudesce na Europa, vemos também o crescimento do ativismo social. Greve geral em novembro de 2010, depois de 20 anos sem mobilizações desta envergadura, em Portugal, para resistir à “flexibilização” de leis trabalhistas; forte onda de mobilizações ganha corpo na Inglaterra para impedir cortes nos gastos públicos; sem falar nas jornadas de lutas na Grécia e, mais recentemente, na Itália, pela derrubada de Berlusconi, e até nos Estados Unidos, no estado de Wisconsin, onde estudantes saíram às ruas contra o corte de direitos trabalhistas do funcionalismo público. São fenômenos em íntima conexão.
A grande questão: o que o centro do capitalismo fará para seguir valorizando o capital impunemente, sem a submissão da periferia? Uma possível resposta: intensificará a sangria da sua própria população. Mas: tais contingentes humanos aceitarão calados ao desmoronamento do que resta do estado de bem-estar social levantado em décadas desde o pós-Segunda Guerra? As classes dominantes dos países ricos parecem cair numa espécie, ainda que incipiente, de isolamento, por mais paradoxal que possa parecer, com a exposição das contradições internas daquelas sociedades, viciadas por sua vez em doses sempre crescentes de mais-valia arrancadas da periferia.
O Brasil, país que assistiu nos últimos 8 anos de governo Lula a uma significativa mobilidade social das classes trabalhadoras, vê agora, neste início de governo Dilma, a retomada de medidas de austeridade fiscal que se supunham superadas. Tais são os pontos mais importantes da conjuntura nacional: o aumento de 0,50% na taxa básica de juros; o anúncio de corte (50 bilhões de reais) do orçamento da União; e a imposição pelo governo de um aumento moderado do salário mínimo, para R$545, quase sem ganho real, conseguida com ampla maioria na Câmara. Tudo isso em apenas 50 dias. As centrais sindicais mal tiveram tempo de ensaiar uma reação mais contundente. São medidas claramente vinculadas à agenda conservadora derrotada em outubro de 2010, freando (em vez de aprofundar) o processo de mudanças e ascensão dos de baixo, visando proteger os de cima da grande crise que ronda. A grande mídia, embora também surpreendida, aplaudiu a “vitória do governo”, mesmo em prejuízo de sua expressão política mais legítima, a oposição demo-tucana em frangalhos, revelador do compromisso mais profundo, de classe, dessa mídia com o andar de cima.
Ainda é cedo para definir o que será o governo Dilma, que, apesar dos primeiros movimentos, promete preservar os programas sociais, a educação, a saúde e o PAC, não ficando claro onde exatamente essa quantia fabulosa de 50 bilhões vai incidir. Corte, por isso mesmo, quase impossível de realizar plenamente sem causar paralisia dos serviços públicos. Mas nem por isso devem as classes trabalhadoras esperar (nem muito menos pagar) pra ver. A hora é de levantar as bandeiras e ganhar as ruas, pressionando pela esquerda um governo de coalizão que sinaliza perigosamente para as classes abastadas e o mercado, colocando em risco o legado conquistado nos últimos 8 anos, abrindo caminho para um realinhamento do Brasil com aquele grupo de países que ora caminha para o isolamento e para o fosso de uma nova crise financeira.
E falando em isolamento e crise, tratemos do Maranhão. Esta ilha de miséria cercada de ascensão econômica e social por todos os lados. Afinal, como se explica o fato de um estado cuja natureza exuberante – com tão diversificadas paisagens (o agreste ao leste, chapadas e cachoeiras ao sul, a Amazônia Legal a oeste, dois tipos litorâneos ao norte, um de manguezais e outro com os Lençóis Maranhenses, e uma mata de cocais no meio) e portanto enorme potencial turístico – e cujo grupo político dominante foi aliado de todos os governos centrais até aqui, não consegue alavancar-se econômica e socialmente, isso num contexto em que o nordeste cresce mais que o resto do país?
Em recente discurso na Assembleia Legislativa do MA, o deputado Bira do Pindaré/PT ressaltou com muita propriedade os contrastes que marcam essa realidade: 55,9% da população vivendo na pobreza absoluta (com menos de R$ 272 por mês), sem acesso a serviços básicos de saúde, educação, esgotamento e água potável; a 2ª pior taxa de mortalidade infantil do país; “620 mil pessoas acima de 15 anos não sabem ler, nem escrever”; 26ª colocação no ENEM de 2009; 2ª pior expectativa de vida; 1º em exportação de trabalho escravo, de vítimas do latifúndio que ainda impera numa terra de coronéis; sistema de segurança pública calamitoso etc. Tudo isso ante “300 mil Km² de terras férteis, 13 bacias hidrográficas” e uma posição estrategicamente invejável no globo, com um porto cujas águas são as mais profundas do Brasil, localizado na ilha de São Luís, a curta distância de países da América, Europa e África.
Politicamente, a oligarquia que governa o estado há mais de 40 anos praticamente ininterruptos, comandada por José Sarney, senador pelo AP e novamente presidente do Senado, conseguiu isolar o Maranhão até mesmo dos avanços democráticos duramente conquistados Brasil afora nos últimos 30 anos. Um governador eleito uma única vez pelas oposições foi deposto e o último pleito, de outubro de 2010, foi marcado por fortíssimos indícios de fraude sistemática.
Guardadas sempre as devidas proporções, o local e o global se vinculam desigual e combinadamente em meio a um capitalismo em crise e um mundo convulsionado. Egito e Maranhão se assemelham em dois pontos significativos impressionantes: catástrofe social e governo autoritário e violento, com aparência de estado de direito, eleições fraudadas e parlamento monopolizado. Uma combinação explosiva que produz, lá, a vanguarda da luta social, e cá, a vanguarda do atraso. Isso talvez se explique pela inserção do estado num país e numa região em que, além de abertura democrática, a energia da luta social é canalizada em grande medida para o momento político-eleitoral. Junte-se a isto a expectativa (elemento subjetivo) que o trabalhador pobre do Maranhão guarda no crescimento e mobilidade social de que vem gozando o resto do Brasil, principalmente o sofrido nordeste, e veremos, ao menos tendencialmente, não fortes solavancos revolucionários, mas pequenos abalos que vão minando a estrutura de poder dominante. A oligarquia carcomida vai desmoronando, e tanto mais rápido será seu fim quanto mais profundamente os partidos de esquerda, os movimentos sociais e o povo sentirem (elemento subjetivo) que a aliança de Sarney com o governo federal, ao contrário de funcionar como catalisador de desenvolvimento, constitui-se na verdade em barreira quase intransponível para a entrada até mesmo dos programas sociais criados por Lula e Dilma e minuciosamente instrumentalizados pela política dos coronéis, chegando sempre a conta-gotas às mãos do povo, e ainda sendo alardeados como realizações locais em períodos eleitorais.
O que fará a coligação de direita que sempre governou o estado – PMDB, DEM etc., agora com a participação pífia e cada vez mais restrita do setor do PT ligado ao vice-governador Washington Oliveira – frente às recentes medidas do governo federal, principalmente o citado corte de 50 bi, que afeta justamente aquilo que sempre garantiu a sobrevivência de velhas oligarquias, ou seja, o orçamento público? Ao que tudo indica, “o melhor governo da minha vida” de Roseana Sarney será o pior da vida do povo. E o compromisso da presidenta de erradicar a pobreza do país encontrará um poderoso obstáculo no Maranhão.
O germe da contradição já vem produzindo resultados importantes. A vitória de Roseana no 1º turno (a poucos milímetros do 2º turno) se deu graças a elementos como: o apoio de Lula, Dilma e um setor do próprio PT/MA que capitulou; abuso ostensivo do poder econômico (como sempre); e enfrentamento predominantemente moderado da oposição de esquerda. Contudo, a oposição tradicional representada pelo PDT de Jackson, que contou com a participação de setores oligarquizados (basicamente o PSDB de João Castelo), e que por curto período foi testada no governo do estado, foi substituída por um campo mais à esquerda – PCdoB, PSB, PPS e setores do PT que resistiram ao duro golpe da direção nacional do partido em favor de Sarney, na forma de uma intervenção – liderado por Flávio Dino. Um claro sinal de que o povo busca alternativa.
Assim, o 3º mandato de Roseana, que ela promete ser “o melhor governo de minha vida” (grifo nosso) e que é continuidade de 2 anos arrancados de Jackson, já começa em crise e paralisia: rebeliões nos cárceres, com um saldo de 94 mortos desde 2007, sendo 24 (7 decapitados) só nas duas últimas – uma em novembro do ano passado (na penitenciária de Pedrinhas) e outra há pouco mais de uma semana (em Pinheiro); a queda de Anselmo Raposo da SEEDUC, indicado de Washington; o apagão na UEMA/campus de Imperatriz, por falta de pagamento da conta de luz; e agora os escândalos na FAPEMA (Fundação de Amparo à Pesquisa/MA), envolvendo, dentre muitos outros, sarnopetistas também ligados ao vice-governador!! São fatos que não deixam dúvidas quanto à situação crítica em que se encontra mergulhado este governo.
Do outro lado, os petistas antioligarquia, reunindo quase todas as correntes do partido no MA, bem como lideranças importantes como Sílvio Bembem, Chico Gonçalves, o ex-prefeito de Imperatriz Jomar Fernandes, o dep. federal reeleito Domingos Dutra e o dep. estadual em primeiro mandato Bira do Pindaré, fundam neste início de fevereiro em ato público o campo Resistência Petista, que pretende ser um enclave contra o conservadorismo sarneysta.
Cabe por fim, tentar dar respostas, mesmo que em grandes linhas, à pergunta perene suscitada por Lenin: que fazer? E aqui, ao menos a linha mestra de atuação surge com clareza. Só a luta social e a ação diligente da esquerda podem botar um fim ao reinado da oligarquia Sarney no Maranhão e livrar também o Brasil desta praga. É preciso acumular mais força, o que só é possível com polarização política e na sociedade, sem trégua. Não há conciliação possível entre democracia e regime oligárquico. O povo mais empobrecido e os sujeitos atuantes não querem mais saber do meramente diferente, o que já foi testado com Jackson. Já deram sinais de que preferem, isto sim, o diametralmente oposto, oposição antagônica. Foi o que ficou claro, por exemplo, na reta final da campanha de 2010, quando Flávio Dino, com atraso, abandonou o discurso do bom-mocismo, mostrando que sua candidatura era, não diferente, mas o contrário do que aí está. Cresceu vigorosamente, ultrapassou Jackson e chegou à beira do segundo turno. É quase impossível demover o aparato sarneysta, que envolve os principais meios de comunicação de propriedade familiar, sem mobilização de sujeitos sociais, o que por sua vez só se faz com polarização política. O discurso (e ação) conciliatório, nesta realidade, só produz descrédito e desconfiança no seio do povo e dos movimentos, e coloca em risco tudo o que se conseguiu até aqui. 2012 vem aí e o movimento contraditório da realidade sempre nos brinda com surpresas.
(*) João de Deus Castro é Maranhense, servidor público do Ministério Público Federal em São Paulo (MPF/SP)
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