Por Flávio
Reis
Um trabalho de Celso
Borges é sempre promessa de surpresas. Poeta visceral, afeito a
experimentações e radicalismos, há muito deixou de fazer
propriamente livros, no sentido mais comum do termo. Apresenta,
antes, objetos de arte. Foi o que vimos no esmerado design dos
livros-cds que compõem a trilogia A
Posição da Poesia é Oposição
– XXI, Música e Belle Epoque. O livro se completa noutra coisa, a
poesia é lançada furiosamente ao encontro de sons, vozes, colagens,
em meio a um grafismo elaborado, num jogo de cores, desenhos,
fotografias, apropriações, citações, que são o invólucro para
os petardos que estouram em nossas lentes, ouvidos e mentes.
O Futuro tem o
Coração Antigo,
lançado recentemente no Cine Roxy, é a nova e desconcertante
iguaria desse alquimista da palavra, que vem misturando poesia com
música, artes plásticas, cinema, fotografia, num esforço sempre
múltiplo, coletivo. O jogo de Celso no entrelaçamento das palavras
com as imagens e os sons ganha mais um capítulo, com duas faces.
De um lado, poemas
curtos, como um click, chamados por ele mesmo de fotográficos, tendo
ao fundo fotografias tiradas por alunos de um curso técnico do IFMA,
coordenado pelo prof. Cordeiro. As fotos utilizam uma técnica
antiga, criando imagens meio embaçadas, disformes, distantes, em uma
palavra, fantasmagóricas.
De outro, a
transposição dos poemas e fotografias para o formato de vídeo, num
filme realizado em parceria com Beto Matuk, onde a experiência
alcança sua maior complexidade, com a inclusão dos sons, a
ampliação das imagens e a duração, revelando de maneira mais
intensa todo o estranhamento que está na base da construção.
Estamos falando de um momento de inflexão, em que o poeta olha sua
longa relação/obsessão com a cidade sem saudosismo, somos logo
avisados na abertura do livro/vídeo, mas como um “exercício de
ternura” na “carne da cidade futura”.
A combinação
aponta, no fundo, para um mergulho necessário e urgente nas sombras
do passado. Não o passado da memória narcísica, inerte, perdido
nos devaneios da autoglorificação, mas aquele turvo, borrado, sujo,
que teimamos em recalcar na imagem dos casarões. O objetivo do salto
é de estabelecer um novo encontro com o passado, sem as
fantasmagorias que nos impedem de olhar de frente os olhos do futuro.
Celso carregou na
vida a paixão da cidade natal, que demarca em três momentos bem
distintos: da infância até os 30, quando criou a sua experiência
de São Luís e inscreveu a cidade em si; depois, os vinte anos
seguintes passados em São Paulo, quando a cidade ganhou os contornos
da memória; por fim, a volta em 2009 e o encontro com uma “terceira
cidade”, quando os alicerces da memória são então sacudidos pela
crueza de uma realidade na qual “cercas elétricas se engalfinham
sobre os muros” e o cenário é de destruição e medo.
O livro/vídeo é
sobre este terceiro momento, mas se constrói de maneira que não
aparece apenas como presente ou simples evocação do passado, e sim
como fantasmagoria, uma projeção do passado no presente. Compõe-se
de dois poemas, o poema-título e A Terceira Cidade.
No primeiro, um
bordão forte, “o futuro tem o coração antigo”, serve de base
para a artilharia diversificada de Celso, alvejando lugares, figuras,
situações, de ontem e de hoje, embaralhando as coisas e os tempos,
enquanto “os azulejos portugueses encardidos nos observam do alto
de sua nobreza rachada”. É a certeza de que “o futuro tem o
coração antigo porque a fonte do ribeirão nunca vai secar e os
condomínios do renascença morrem de medo”, “porque gullar ainda
não escreveu o poema sujo e gonçalves dias não conheceu sabiás
empalhados”, “porque o maria celeste ainda queima no cais da
sagração” e, principalmente, “porque faustina faustina
faustina”, eco que se perde no oco do tempo.
Em pequenos flashs
são provocados nomes e imagens emblemáticas da nossa história. Uma
história nebulosa, onde o fundador é uma miragem e “ninguém sabe
se bequimão é uma força ou uma farsa na forca”. Celso trabalha à
vontade em meio aos pedaços, pois sabe que “o futuro tem o coração
antigo porque precisamos continuar bebendo na fonte de marcel
duchamp”.
No poema A Terceira
Cidade, mais longo e propriamente na forma de “poema fotográfico”,
vemos todo o impacto da antiga cidade dos azulejos violentada num
progresso devastador, mas ao mesmo tempo o anúncio do rompimento do
casulo em que a cidade se manteve até então. A abertura não deixa
dúvida, “Ó, ilhéus, abris os portais do futuro para o
renascimento do maravilhoso”. O recomeço indica que o tempo
passou, pois “alguma coisa já não é mais a mesma”. O enredo é
simples: “era uma vez uma cidade e a cidade já era”.
Desfilam a
devastação e a violência vivenciadas hoje nos quatro cantos da
Ilha. São trechos quase sempre estarrecedores, mesmo em sua acidez
crítica, expondo as muitas fraturas de uma cidade perdida em meio a
ruas engolidas por buracos, a destruição ambiental e a lenta agonia
dos casarões, quando “o berro mudo dos cupins devora a pele podre
da parede do prédio”, enquanto “uma boca de lobo uiva na
camboa”, “jegues abandonados vagueiam em procissão pelas
estradas da maioba” e “centenas de carros rosnam na jerônimo de
albuquerque”.
Superposição de
cenas cotidianas: “ratos mascam chiclets num bueiro de vinhais.
baratas brincam de esconde-esconde no calçadão da rua grande.
impossível fotografar”. A cidade atulhada de carros, retratados de
maneira turva, entupindo as vielas entre os casarões perdidos no
tempo, mergulhados na sujeira e no abandono, por trás das placas
cheias de cifrões com as promessas nunca cumpridas de
reconstituição. Tudo parece distante e, no fundo, totalmente
próximo, incômodo. Fantasmas que nos paralisam mesmo quando
agonizam.
Momento de morrer,
momento de renascer, “a mais bela flor do mundo agoniza. osso duro
de morrer”. É também o momento do encontro entre as três
cidades, entre as três eras, como um ajuste de contas. Onde se
esconde São Luís? Onde se encontra São Luís? Em que visões, em
que memórias, em quais sonhos? Terá a antiga cidade dos azulejos
virado um grande pesadelo? Ou este foi sempre seu retrato mais fiel,
sua imagem mais profunda? Ciente da urgência, Celso sabe que “chega
uma hora em que chegou a hora”, “uma hora em que os gatos latem
os cães piam e os bambis atiram pra matar”. Para São Luís e os
ludovicenses essa hora parece soar. “O centro da cidade é um
ciclope se mirando no espelho: narciso em estado terminal”.
Submetida a um
processo desordenado e brutal de expansão, sem a resolução mínima
de problemas estruturais seculares, chegando mesmo ao ponto de
explosão, a cidade afunda a olhos vistos, sob a complacência de uma
elite mesquinha apodrecida. “fidumaséguas!” berra o poeta. O
fundo do poço em que nos encontramos parece o momento final da
cidade na lenda da serpente, evocada no fecho do poema. A hora mítica
do despertar, da destruição das fantasmagorias que dominam a nossa
cultura. Momento possível, atual, de quebra da adoração vazia dos
símbolos em que estamos atolados, seja da cultura ateniense, da
cultura popular ou da união hipócrita de ambas executada sob o
comando da mídia, em prol de uma apropriação criativa da própria
história, pela invenção, pela negação desse futuro perverso
vendido como redenção, onde o “turista de pacote clica a tanga da
brincante do boizinho de butique”.
Uma obra em
processo, que não tem programa, roteiro ou atores definidos, nem
precisa, pois começa a se desenhar anarquicamente em experiências
descontínuas e dispersas neste momento de cruzamento de gerações,
traduzindo-se em movimentações variadas que podem confluir de
maneira a criar fendas nas visões canônicas da cultura e da
identidade ludovicenses. Nada mais adequado para celebrar a urgência
deste “espírito destrutivo”, aliás, que a própria dedicatória
feita por Celso naquela noite. Em sua maneira direta, diz apenas:
“Chega de boferagem. Viva a fúria!”.
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