terça-feira, 6 de março de 2007

Baudrillard e sua morte simbólica.

Morreu o sociólogo J. Baudrillard com 77 anos de idade em Paris. Autor de feroz críticas à sociedade do consumo, declarou em 1991 que a guerra do golfo não existiu e que os ataques às torres gemeas em NY foi um ato triunfante do mundo globalizado contra si mesmo. Autor original, irriquieto, irrevenrente, ele era capaz de misturar teoria sociologica, filosofia, literatura, linguistica, psicanálise e semiologia em texto que, como ele proprio, classifica, beiravam a violência teórica pura, com momentos poéticos e belos, apesar de niilistas em algumas colocações. Segue abaixo um texto de J. Machado comentando as análises de Baudrillard sobre o 11 de setembro.


O 11 de Setembro não aconteceu


Juremir Machado da Silva1

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“Ela estava procurando sair da dor, como se procurasse sair de uma realidade outra que durara sua vida até então”.

Clarice Lispector

É provável que este texto já tenha sido escrito. Se não o foi, deveria ter sido. Por Jean Baudrillard. Ou por uma personagem de Clarice Lispector. Ambos tratam da virtualidade do real. Deixemos o caso, no entanto, ao profissional do desvelamento do simulacro. Afinal, o pensador francês escreveu um dia que “a Guerra do Golfo não aconteceu”.2 Referia-se ao confronto entre Estados Unidos e Iraque em 1991. Tudo o que se dá por excesso, desaparece por deficiência de conseqüências em relação às expectativas. O conflito de 1991 não aconteceu como guerra convencional, situação em que países se enfrentam e morrem combatentes dos dois lados numa espécie de jogo sem cartas marcadas. Na “Guerra do Golfo” os norte-americanos já praticavam o “risco zero” e não pretendiam perder soldados na luta. Só o adversário tinha encontro com a morte numa guerra sem trincheiras, mas muito parecida com um videogame impiedoso. Mortal combate com defecções num só lado.

O 11 de Setembro não aconteceu da mesma forma que o ano 2000 e o bug do milênio também não aconteceram. Apesar de previsões e de expectativas, todas vertiginosamente apocalípticas, o mundo permaneceu igual. Depois dos terríveis atentados ao WTC, a imprensa mundial declarou que o mundo nunca mais seria o mesmo. Errou. Apenas de uma maneira bastante superficial o mundo alterou-se. Há mais dificuldades para entrar nos Estados Unidos e mais dispositivos de segurança nos aeroportos. Como sempre, o choque provocou uma reação com tendência ao definitivo. Depois, também como sempre, a rotina impôs-se cruelmente e tudo voltou à quase normalidade, ou seja, ao mesmo.

Baudrillard chegou a pensar que o 11 de Setembro significava o fim da “greve dos acontecimentos”, realizando pelo negativo um certo retorno do positivo, a retomada da História. “O mais ínfimo detalhe poderia ter determinado o fracasso de uma ação como essa e, sem dúvida, pela mesma ínfima razão - pois o destino é sutil - mais de um acontecimento excepcional terá deixado de acontecer. Mas, quando acontece, provoca como que um efeito de sucção, de bomba de absorção que asfixia todos os acontecimentos futuros. De maneira que apaga não somente tudo o que lhe precedeu, mas também tudo o que virá depois dele”.3

Ao contrário do que se costuma afirmar, com simplismo disfarçado de profundidade intelectual, Baudrillard não é um autor pessimista. Na pior das hipóteses, a mais inquietante e bela, é um pensador irônico e devorado pelo culto da forma. Nesse sentido, o 11 de Setembro poderia ter representado um bem pela magia do pior: o fim do fim da história. A mídia, embora sedenta de fatos e ansiosa por protagonizar, ou testemunhar, o grande acontecimento, limitou-se a exagerar as conseqüências de um fato de causas exageradas. A ironia de Baudrillard eleva e reduz a mídia a uma situação incontornável. Se, por um lado, ela quer tomar-se pelo acontecimento, por outro lado, condenada ao fracasso, está condenada a cobri-lo ou a descobri-lo.

Gilles Lipovetsky já havia detectado essa contradição com muito mais tranqüilidade: “O culpado já foi em tudo designado: temos um novo diabo responsável por todos os nossos males: a mídia”.4 Mas esse demônio, segundo Lipovetsky, é bem menos poderoso do que imaginam os seus detratores. Ou, na percepção de Baudrillard, bem menos poderoso do que gostariam os seus atores. O 11 de Setembro não encontra as suas causas na mídia nem as suas conseqüências corretamente previstas pela mídia. Se os acontecimentos voltaram ao palco, como imagina Baudrillard, as câmaras, mais preocupadas com o futuro, flagraram o presente com lentes distorcidas pela ânsia de devir.

O 11 de Setembro que a mídia viu aconteceu antes: no cinema de ficção científica (Nova York sitiada). O 11 de setembro que a mídia não viu acontecerá depois, enfim reconstruído pelo cinema para que coincida com as conseqüências projetadas pelo imaginário jornalístico. O 11 de Setembro realmente acontecido é grotesco demais, inconseqüente (sem as conseqüências) de menos, factual em excesso para ser enquadrado como uma notícia ou considerado como um evento histórico específico. A mídia precisa inseri-lo numa das suas séries. De alguma maneira, não muito distante do senso comum, a mídia é positivista e teleológica: cada fato importante deve encerrar uma etapa do desenvolvimento social e inaugurar outra.

A mídia admira tudo o que põe fim, o que finaliza, termina, extermina, elimina, inaugura, abre, começa, salta sobre os fatos. Talvez, de algum modo, antes de Pierre Lévy, os jornalistas tenham aprendido uma lição que o guru da cibercultura, bebendo na semiótica tradicional, só ensinaria recentemente: “No centro da significação acha-se a operação de substituição”.5 No caso da mídia, numa operação bem menos lógica, pretende-se substituir o acontecimento pelo imaginário do acontecimento ou o fato pelo que deveriam ser as conseqüências do fato.

O problema do 11 de Setembro, portanto, extrapola o horror do 11 de Setembro e entranha-se no vazio das conseqüências rapidamente previstas e lentamente refutadas. O 11 de Setembro de 2001, com a explosão das torres do WTC, é irmão gêmeo da queda do muro de Berlim. Ambos não aconteceram como visto e “pré-visto” pela mídia. Nos dois casos, complementares e antagônicos, a mídia anunciou que o mundo nunca mais seria o mesmo. E ele não o foi. Mas não como a mídia imaginava. O 11 de novembro de 1989 foi apresentado como a porta redentora do futuro radioso de uma humanidade enfim libertada. O 11 de Setembro de 2001 foi narrado como uma porta letal pela qual a humanidade entraria para sempre na era do medo e do terror.

Nos dois casos, repita-se, a mídia foi apenas porta-voz. De si mesma. Lipovetsky relativiza: “De um certo ponto de vista a mídia aparece como instrumento de um sensacionalismo ‘irracional’ que exagera os novos perigos. De outro ponto de vista, permite aos indivíduos a reação, o protesto, em outras palavras, de pôr-se como atores num mundo cujos grandes interesses lhes escapam”.6 Absolvida de sua responsabilidade sobre as causas, resta-lhe explicar-se sobre as conseqüências anunciadas e não vindas. Note-se que esse não vir, sob muitos aspectos saudável, dá-se por excesso de antecipação: o mundo não se tornará pior por já estar “na pior”. Ele ainda será o mesmo por ser um feixe de contradições com espaço suficiente para o medo e para o terror. Ao mesmo tempo, como historicamente tem acontecido, construirá o seu futuro nas margens do esquecimento.

A questão, no sentido irônico das perguntas de Baudrillard, teria de ser agora: quando e como, de fato, o mundo muda? Talvez Baudrillard já tenha dado a resposta: “Nem política nem economicamente a eliminação das torres põe em xeque o sistema mundial. É outra coisa que está em jogo: o eletrochoque da agressão, a insolência da sua execução e, por conseqüência, a perda de crédito, a falência da imagem. Pois o sistema só pode funcionar se consegue ser o equivalente da sua própria imagem, se pode refletir-se como as duas torres na sua condição de gêmeas, encontrar seu equivalente numa referência ideal. É isso que torna o sistema invulnerável - e é essa equivalência que foi quebrada. É nesse sentido que, mesmo sendo tão inapreensível quanto o terrorismo, ele foi, contudo, atingido no coração”.7 Com que conseqüências?

O sistema pode funcionar com marcapasso ou assistido por aparelhos. O 11 de Setembro não aconteceu por excesso de previsão quanto ao devir e por deficiência de imagens sobre o seu “fazer-vir”. Ou, ao inverso, o 11 de Setembro não aconteceu por deficiência de previsões quanto à sua emergência e por excesso de imagens da sua explosão. Como acontecimento, na sua escala, pretende-se único, mas essa originalidade está atrelada mais ao simbólico do que ao concreto. O coração da América foi atingido. Outros corações, porém, já tinham sido explodidos. E outros impérios humilhados. Nesse sentido, a história repete-se como tragédia, ao mesmo tempo, certamente, única e sempre a mesma. A banalização do 11 de Setembro não ocorrerá por contágio de fatos, nem por espiral virótica de acontecimentos semelhantes nas artérias da potência mundial, mas por multiplicação das imagens. Baudrillard é refém, como em Matrix, do sistema analítico que inventou.

Assim, entre as vítimas, deve-se acrescentar Jean Baudrillard. Vítima por excesso de percepção, como Guy Débord a respeito da “sociedade do espetáculo”, e de desvelamento. Baudrillard concebeu uma “estratégia fatal” capaz de devorá-lo junto com seu objeto: o 11 de Setembro não aconteceu por excesso de realização. É o próprio Baudrillard, em seu texto sobre a guerra que derrubou Saddam Hussein, quem diz: “Mas a realidade integral do poder é também o seu fim”.8 Da mesma forma, a realidade integral da análise é também o seu fim. Se o sistema escapa pela intervenção tecnológica que o mantém virtualmente em ação, a crítica salva-se pela ironia. Quanto à mídia, encurralada em seu imaginário artificial da verdade, resta-lhe o esquecimento, a falha da memória como regeneração.

Mais do que qualquer outro sistema, por sua própria “natureza”, a mídia funciona por excesso: a profusão do novo empurra o velho para a irrealidade do esquecimento. Se a ironia serve de saída de emergência para o analista, desde que praticada com audácia e originalidade, ou com o desprendimento de um homem-bomba, disposto a morrer pela sua causa, para a mídia só resta a possibilidade de voltar a “cobrir” para “descobrir”. Na atualidade, empurrada pelos ventos delirantes do pós-tudo, ela tenta tomar o lugar do historiador, ou do vidente, e limita-se a praticar o comentário como encobrimento. Não custa lembrar que cobrir, em jornalismo, significa “descobrir” ou “desencobrir”, desvelar, dar à luz, “fazer-vir”, revelar, fazer emergir.9

O 11 de Setembro de 2001 aconteceu como fato. Isso deveria ser suficiente para que se impusesse como acontecimento. Este, contudo, exige uma reconstrução “imaginal” complexa e derivada do trabalho conjunto dos diversos protagonistas em ação num momento histórico determinado. A mídia, como primeiro ator em condições de reconstruir o fato como acontecimento, pretendeu, desde o princípio, dar-lhe o caráter de divisor de águas e de marco referencial de uma nova era. Mais do que isso, tentou atribuir-lhe o aspecto definitivo de maior divisor comum (“o mundo nunca mais será o mesmo”) planetário.

Como tudo o que a mídia diz, impulsionada por seus próprios catalisadores simbólicos, só encontra refutação ou confirmação nela mesma, a cada aniversário do 11 de Setembro a imprensa universal confirmará que o mundo nunca mais foi o mesmo. Assim, como de costume, o que aconteceu como fato se tornará acontecimento por ter sido narrado como tal e confirmado em seu estatuto, mesmo que fatos insistam em mostrar outras realidades e versões. Noutra leitura, marginal e chocante, o 11 de Setembro de 2001 aparecerá como a simples confirmação de que o mundo continua o mesmo, “mais mesmo do que nunca”, caso se admita esse abuso de linguagem, um mundo em que, desde sempre, para usar a insuperável expressão de Hobbes, “o homem é o lobo do homem”. Os contos de fada, porém, são eternos.


NOTAS

1 Pesquisador do CNPq e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS. Autor de As Tecnologias do imaginário (Porto Alegre, Sulina, 2003).

2 BAUDRILLARD, J. La guerre du Golfe n'a pas eu lieu. Paris, Galillée, 1991.

3 BAUDRILLARD, J. "Réquiem para as Twin Towers", in Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 20-21.

4 LIPOVETSKY, G. Métamorphoses de la culture libérale - éthique, médias, entreprise. Montreal:: Liber, 2002, p. 90 [fragmento traduzido por JMS].

5 LEVY, P. O que é virtual? São Paulo: Editora 34, 1996, p. 84.

6 LIPOVETSKY, G. Métamorphoses de la culture libérale - éthique, médias, entreprise. Montreal: Liber, 2002, p. 100 [fragmento traduzido por JMS].

7 BAUDRILLARD, J. "Hipóteses sobre o terrorismo", in Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 48.

8 BAUDRILLARD, J. "A Máscara da guerra", in Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003, p. 474.

9 Cf. a esse respeito SILVA, J.M. As tecnologias


REFERÊNCIAS

BAUDRILLARD, Jean. Power inferno. Porto Alegre: Sulina, 2003.

______. La guerre du Golfe n’a pas eu lieu. Paris: Galillée, 1991.

DEBORD, Guy. La Société du Spectacle. Paris: Gallimard, 1967.

LEVY, Pierre. O que é virtual? São Paulo: Editora 34, 1996.

LIPOVETSKY, Gilles. Métamorphoses de la culture libérale - éthique, médias, entreprise. Montreal: Liber, 2002.

SILVA, Juremir Machado da. As tecnologias do imaginário. Porto Alegre: Sulina, 2003.

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