quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

A POLÍTICA DO ENGODO E O ENGODO DA POLÍTICA




Flávio Reis


Em artigo publicado no primeiro número do Vias de Fato, Wagner Cabral indicou a existência de uma “cultura da Libertação” no imaginário político maranhense “dos últimos sessenta anos”, um filme onde se destacam três momentos fortes de conjugação do verbo “libertar” ( a Greve de 1951, a posse de Sarney em 1966 e a eleição de Jackson Lago em 2006). O tema de fundo é o da repetição na história, a sucessão de festa e malogro, a cíclica reposição de palavras e atos, “com a mesma estrutura básica de enredo: ‘fim da oligarquia’ e festa popular na Ilha Rebelde”, visto pelo ângulo da produção de símbolos, das narrativas épicas e registros de imagens, vale dizer, da construção da memória.
Denso e cheio de dicas, o texto sugere possíveis leituras da questão. De um lado, tudo se resumiria ao “cinismo dos políticos (cada qual a seu tempo e a seu modo)”, que utilizam o verbo demagogicamente, mal disfarçando o oportunismo e o adesismo como motor das ações, forma de compreensão que remete à antiga questão da irrelevância das ideologias. De outro, “a permanência do dialeto da Libertação corresponderia à continuidade da estrutura oligárquica patrimonialista, em que o dialeto seria uma necessidade do teatro do poder”. Por este viés, não apenas seria possível “compreender as múltiplas motivações da mobilização de elites e de setores populares”, como também a “dinâmica cíclica do processo político”, sem perder de vista que “nem tudo é mera repetição ou eterno retorno”, pois “há inúmeras diferenças entre as três conjunturas, as quais, embora oriundas de crises internas da oligarquia e fluentes na mesma linguagem, tiveram resultados distintos em função da correlação de forças existente em cada momento”.
Encerra a reflexão, questionando as “condições e possibilidades de evolução da cultura da Libertação nos próximos anos”. Continuaria presente no cenário, servindo para a organização de alternativas políticas, seja de cunho democratizante, seja novamente de raízes patrimoniais e parricidas (origem de todas as dissidências), numa manutenção do “teatro oligárquico”? Ou perderia densidade e se dissolveria, “sendo substituída por outra configuração político-cultural”?
A atualidade e urgência das questões levantadas são evidentes, às vésperas de mais um capítulo do nosso triste enredo da dominação oligárquica. Os atores se aprontam, tentando viabilizar-se nos papéis pré-estabelecidos para a eleição do próximo ano. Provavelmente, o governador retirado do Palácio através do “golpe pela via do Judiciário”, na expressão de Francisco Rezek, tentará a volta, editando uma nova versão da Frente de Libertação do Maranhão (designação utilizada nas campanhas de 1965 e de 2006), em disputa com Roseana Sarney, que arcará com o peso do desgaste da família no cenário nacional, mas contará com o apoio do governo federal (se aberto ou meio velado, só a conjuntura dirá, pois nisto Lula se tornou um mestre). Colocando-se até agora como terceira opção, mas apto a ceder às conveniências e buscar uma vaga no Senado, está o deputado federal Flávio Dino, ainda de olho nos desdobramentos da ação que move na Justiça Eleitoral contra o prefeito João Castelo.
Se o “discurso da Liberdade” está pronto para ser reativado, agora com as cenas dos senhores togados do TSE passando a perna no eleitor e da “resistência” do governador cassado no Palácio dos Leões, escudado por fiéis “balaios”, o grupo reconduzido ao poder, com apoio de ministros e da tropa de choque de Lula e do PT, tentará se escudar na imagem que Sarney sempre buscou construir de si na história do Maranhão, a de promotor do “desenvolvimento”. Ambas as mensagens, no entanto, não se sustentam.
A falta de distinção entre grupo político oligárquico e estrutura de poder oligárquica é o primeiro ponto a ocultar os mecanismos centrais da reprodução da forma de dominação. Confunde-se o descenso ou enfraquecimento de grupos com o fim da dominação oligárquica, como no caso do carlismo na Bahia ou da derrota eleitoral do grupo de Sarney, em 2006. A eleição de Jackson Lago não pode ser dissociada da cisão criada pelo então governador José Reinaldo e toda a utilização da máquina política. No governo, assistimos a uma reprodução deslavada de antigas práticas oligárquicas, como o nepotismo, a corrupção, o clientelismo. A cassação do mandato pelo TSE e a entrega do governo a Roseana Sarney reafirmaram o velho modelo de mediação dos conflitos intra-oligárquicos, por cima, através da utilização dos poderes da República em prol da manutenção de grupos políticos, e refletem, por outro lado, o atual ativismo político do Judiciário, pois uma decisão não deveria ter resultado na outra.
O “discurso da Liberdade” sempre ficou restrito a arma de combate contra a oligarquia de plantão (ontem os vitorinistas, hoje os sarneysistas), nunca desceu aos porões da estrutura de mando e, principalmente, não chega aos vínculos de sustentação de grupos oligárquicos a partir dos interesses do governo federal, característica antiga mantida na era FHC-Lula. Em uma palavra, não é possível discutir a sério a questão das oligarquias políticas sem passar pelos pactos conservadores que se mantém como uma das peças de sustentação do governo. Assim, atacar hoje Sarney ou Renan, Collor, Jader Barbalho, sem falar em Lula, é esconder exatamente o elo responsável pela preservação dos mandatos dos dois primeiros e pelo reaparecimento dos dois últimos na cena política. Este, de resto, talvez seja o maior problema para uma candidatura viável de Flávio Dino enquanto opção “contra a oligarquia”, pois como conciliar a posição de defensor intransigente e aliado fiel do governo Lula e atacar o domínio de Sarney, que não se sustenta aqui e sim em Brasília? Só com muito exercício de ilusionismo...
No cenário político cada vez mais dominado pela eficiência da publicidade, Roseana tenta simular um Maranhão imerso em vertiginoso surto de desenvolvimento, a partir dos investimentos federais alardeados com bastante estardalhaço. A euforia que nestas circunstâncias costuma tomar conta de círculos empresariais, políticos, donos de construtoras, lobistas e intermediadores de todo tipo (e de todo preço), além da imprensa publicitária, com as promessas de redenção econômica e social, não esconde a antiga concepção de desenvolvimento predatório, pouco preocupado com as populações, os impactos ambientais, o destino das cidades. Tudo se dilui em números e projeções espetaculares.
É um estilo de desenvolvimento sempre acompanhado de escândalos, como os do Pólo de Confecção de Rosário, da Usimar, da famosa estrada fantasma ligando Arame a Paulo Ramos, dos grandes projetos de irrigação malogrados, da privatização do Banco do Estado, do rombo da Cemar (vendida pelo valor simbólico de R$ 1,00), e por aí vai, a lista seria interminável. Discutir a concepção de desenvolvimento de Sarney (ou será de Fernando, o filho?) e de Roseana (ou será de Jorge Murad, o genro?) é simples, basta olhar para as últimas décadas, pois continuamos patinando praticamente na mesma miséria, entre os estados com as piores condições de saúde, educação e habitação, mas numa situação muito mais crítica de degradação ambiental, desarticulação da produção agrícola e inchaço de cidades sem nenhuma estrutura. É um tipo de desenvolvimento que serve apenas a uns poucos, submetidos a uma teia organizacional incrustada no aparelho do estado, mas regida de fora do sistema político.
Eleições não são apenas momentos de disputa para o exercício de funções públicas, podem tornar-se também momentos importantes de circulação de informações, análises, apresentação de denúncias, mobilização de demandas sociais. Num estado que atravessou o século XX comandado por grupos políticos que se enredaram em todo tipo de fraude eleitoral, corrupção, grilagem de terras, desvios de verbas públicas, pistolagem, massacres e expulsões de índios e camponeses, tudo acobertado por tribunais controlados por juízes sem legitimidade social (como tem sido indicado de forma brilhante pelo juiz Jorge Moreno, aposentado compulsoriamente de maneira vergonhosa pelo TJ do Maranhão), em suma, um estado onde os grupos políticos se organizam e agem como máfias, a “libertação”, se acontecer, não virá de nenhum agente investido na posição de salvador, nem de alguma ação redentora do governo federal.
No sentido estrito da definição dos novos ocupantes das cadeiras do Executivo e do Legislativo, a eleição de 2010 se resolverá no circuito da estrutura oligárquica. Daí muito pouco se pode esperar. Mas o fosso entre representação política e sociedade, que se agrava no Brasil, pode ganhar cores interessantes no Maranhão, um dos estados que tradicionalmente simbolizam o atraso no conjunto da federação, na medida em que a mistura de política e crime, o festival de nepotismo e enriquecimento ilícito envolvendo os três poderes, ganha contornos de escândalo nacional.
É um momento ímpar para mostrar como Sarney não é simplesmente um problema do Maranhão (ou do Amapá, onde criou uma “sucursal”), mas do Brasil, pois todas essas teias se encontram e ganham sustentação em Brasília. Ao contrário de outras eleições escandalosas, como as de 1994 (Roseana) e 2002 (José Reinaldo), ignoradas pela grande imprensa, nesta, a percepção da dimensão nacional da questão tira das sombras, ainda que por um momento, este velho grotão do Norte. O Maranhão, em sua exposta podridão, tem algo a dizer sobre o Brasil e a natureza dos processos em curso.
Politizar as eleições de 2010 passa por inquirir as imagens cristalizadas que serão manipuladas pelos grupos em disputa. É pensar além do enredo da “cultura da Libertação” e desmascarar o engodo desenvolvimentista predatório e patrimonialista, ambos apresentados como “salvação”. Não parece tarefa para nenhuma das principais forças político-partidárias postas no tabuleiro.
Flávio Dino, aparenta correr por fora, mas possui vínculos importantes com essa estrutura, nas tradicionais dimensões nacional, regional e local, como ficou patente em suas duas campanhas eleitorais. Na mais recente, para a Prefeitura de São Luís, montou uma estratégia totalmente colada em Lula e não disse palavra sobre a crise política em curso, até ser acusado de fazer o jogo da família Sarney e contar com o apoio do Sistema Mirante, limitando-se, então, a acusar os adversários de caluniadores. Sem discurso, terminou a campanha sendo apresentado como “o candidato das crianças”, utilizando quadros no programa eleitoral em que elas apareciam dizendo: “peça pra seu pai votar em Flávio Dino”. Se no vale-tudo do mundo da publicidade tal colocação pode até ter algum sentido, gerar algum resultado, do ponto de vista do discurso político equivale à instrumentalização do vazio.
Ficamos, então, com os sinais de decomposição de uma representação política que nunca foi além de um “vão simulacro”, na antecipação certeira de João Lisboa, feita há um século e meio no insuperável Partidos e Eleições no Maranhão. A crise da estrutura oligárquica não decorrerá meramente do jogo partidário e das disputas eleitorais. Não tem como protagonistas José Reinaldo, Vidigal, Castelo e outras figuras carimbadas, criadas no interior de grupos oligárquicos. Nem virá das ações escusas a que Jackson Lago e sua turma se dobraram, ou do oportunismo vazio do PCdoB, inteiramente voltado para a entronização de um novo cacique, muito menos, é claro, dos neosarneysistas existentes no PT, capazes de trocar a própria história por algumas sobras dos velhos senhores do Maranhão e aplacar a consciência à maneira de Delúbio Soares, invocando a “missão partidária” em prol de uma “causa maior”, afirmando cinicamente defender o que estão destruindo. A crise se aprofundará, não como choque entre projetos alternativos, mas na forma da pura desagregação, como crise de legitimidade.

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Flávio Reis é professor da UFMA. Publicou Grupos Políticos e Estrutura Oligárquica no Maranhão.

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