quinta-feira, 18 de fevereiro de 2010
Socialismo volta ao programa, mas sem rupturas
Do Valor
Por Maria Inês Nassif
O PT já esteve muito mais à esquerda do que está hoje; também já esteve muito mais à direita. Desde 2002, quando venceu um processo eleitoral imbricado com uma grave crise financeira – alimentada por um movimento especulativo de motivação também eleitoral -, a posição ideológica do partido tem sido mais movida pela conjuntura do que pelos grandes embates internos que marcaram a vida da legenda até o XII Encontro Nacional, de dezembro de 2001, responsável pelo último documento que foi produto de uma disputa acirrada entre suas tendências.
Segundo o secretário de Relações Internacionais do PT, Valter Pomar, da Articulação de Esquerda, a radicalização da oposição, a partir de 2005, levou a um paradoxo: enquanto a esquerda perdia espaço internamente, todo o partido se “esquerdizava”. “A burguesia, a direita, a oposição radicalizaram e o efeito foi ‘esquerdizar’ o partido, ou seja, trazê-lo da Carta aos Brasileiros para o programa do XII Encontro”, disse.
O PT, no seu 4º Congresso, que começa hoje, deve manter a tendência do 3º Congresso, de assumir-se como partido socialista democrático, sem, contudo, voltar ao período pré-XII Congresso, quando os grupos mais radicais chegavam a pregar a ruptura democrática. As teses apresentadas pelas tendências que disputaram o Processo de Eleição Direta (PED) do ano passado são um claro sinal disso: apenas a tendência mais radical, a Esquerda Socialista, fala em mudança no “modo de produção” e na “superação prática das relações capitalistas”.
“As teses do PED relatam a consolidação da ideia da revolução democrática no Brasil, do socialismo democrático. O PT, antes de ser comprometido com a ruptura, tem compromisso com o Estado democrático de direito”, afirma o ex-ministro da Justiça Tarso Genro. “Foi um caminho processual: não quebramos a ordem nem fizemos a revolução”, constata o deputado José Genoino, ex-presidente do partido.
O XII Encontro Nacional do PT, realizado em dezembro de 2001, aprovou “Diretrizes do Programa de Governo do PT para o Brasil”, documento coordenado pelo então prefeito de Santo André, Celso Daniel, num trabalho de costura das posições das facções mais à esquerda do partido e as do já consolidado Campo Majoritário , que havia feito uma forte inflexão ao centro como concessão para eleger Luiz Inácio Lula da Silva presidente. O documento professava o socialismo, mas admitia uma aliança com a “burguesia” – definia uma política de alianças mais ampla, uma exigência de Luiz Inácio Lula da Silva para concorrer em 2002, depois de ter sido derrotado em 1989, em 1994 e 1998 como candidato de uma coligação que sequer conseguia reunir todos os partidos que se diziam de esquerda. A “Carta ao Povo Brasileiro”, divulgada em junho de 2002, quando o dólar fazia uma escalada perigosa frente ao real, deu a guinada definitiva ao centro, prometendo continuidade na política econômica do governo tucano de Fernando Henrique Cardoso. O socialismo encolheu.
Em 2005, atingido em cheio pelo chamado Mensalão – série de denúncias de comprometimento da direção do partido com captação ilegal de dinheiro para financiar campanhas eleitorais -, o PT sofreu dois movimentos que teoricamente neutralizariam um ao outro. De um lado, perdeu a parcela mais radical da esquerda, que saiu com muito barulho e fundou o P-SOL. Isso teoricamente definiria o esvaziamento da esquerda partidária. De outro lado, foram excluídos do governo os integrantes do Campo Majoritário que detinham grande poder sobre as definições de política e política econômica, o então ministro da Fazenda, Antonio Palocci, e o chefe da Casa Civil, José Dirceu – e o controle exercido por ambos não era favorável às tendências de esquerda. Palocci era o fiador da política econômica ortodoxa, de continuidade à do governo anterior. Dirceu, segundo integrantes da esquerda, exercia controle sobre as minorias internas, dificultando o acesso delas ao governo petista.
O racha do P-SOL, na época um trauma partidário, conteve o avanço das tendências de esquerda quando a grande crise política do Mensalão colocava em xeque, internamente, o pragmatismo do Campo Majoritário (hoje chamado Construindo um Novo Brasil – PNB, que elegeu José Eduardo Dutra no Processo de Eleição Direta, o PED, de 2009). No PED de 2005, o primeiro depois do escândalo, o grupo que daria origem ao P-SOL concorreu à presidência do partido com Plínio de Arruda Sampaio. Derrotado no primeiro turno, Sampaio anunciou a saída do partido. Somados os votos de toda a oposição ao Campo Majoritário no primeiro turno do PED de 2005, ela tinha mais do que Ricardo Berzoini (SP), do Campo Majoritário; sem o grupo de Sampaio, a esquerda perdeu por 5 mil votos.
Para o secretário das Relações Internacionais, a “ironia da história” é que, a partir da saída desse grupo, o PT como um todo foi para a esquerda. Para o ex-presidente do PT, o deputado José Genoino, a dissidência “fez mais barulho do que deu prejuízo efetivo”. “A saída do grupo não foi representativa”, concorda o deputado Paulo Teixeira (PT-SP).
“A esquerda do PT começou a transitar no governo depois da saída do Palocci. Ele na economia, e Dirceu na política, limitaram muito o debate ideológico interno no primeiro mandato”, afirma Teixeira. Mas, para o ex-prefeito Raul Pont, da Democracia Socialista (DS), tendência também à esquerda do Campo Majoritário ), de alguma forma o grupo hegemônico, de centro, foi obrigado a ceder e “re-ideologizar” o PT, pois o pragmatismo do setor hegemônico não conseguiu, por si só, consolidar uma unidade partidária. Assim, foi obrigado a assumir “compromissos mais estratégicos”.
O fato é que, sem Palocci e Dirceu no governo, e mesmo sem o grupo que originou o P-SOL no partido, em 2006 os documentos do PT deram uma nova guinada à esquerda. Nas resoluções do 3º Congresso, em 2007, o socialismo democrático voltou a ser professado como opção ideológica sem que isso fosse considerado constrangimento político à legenda que ocupa o poder desde 2003, pelo voto direito, e já havia abandonado há algum tempo ideias de ruptura revolucionária. No documento final, o partido retoma a ideia de socialismo de forma clara, embora definindo o tipo de mudança que prega para o país: “A grande tarefa que o PT, o governo Lula, os movimentos sociais e as demais forças de esquerda têm pela frente é avançar na construção permanente de um governo democrático e popular com base em um projeto de desenvolvimento de longo prazo para o país, e que já está em andamento”.
“Além da reforma política e de mudanças na política econômica – com predominância do desenvolvimento sobre a estabilidade – temos de lutar por uma ampla reforma do Estado brasileiro”, diz o documento. E define a diferença entre o seu projeto e o do PSDB. “A direita tucano-liberal quer que o Estado apenas financie, não planeje. Nós entendemos que deve financiar e planejar.”
Segundo Genro, o debate sobre o socialismo nunca foi abandonado, mas foi obstruído. “A discussão permaneceu no partido durante todo o tempo, mas o PT ficou na defensiva em função da crise do socialismo real”, disse. “O socialismo democrático é uma visão que se consolida no PT desde 2002 e tem como ideia central a democracia como reguladora das relações entre o Estado e a sociedade. Hoje os partidos do mundo inteiro têm como ponto de partida de reflexão a questão da democracia.”
O que define um programa socialista, no entanto, não é a defesa de uma maior intervenção na economia – esse assunto transcende os partidos socialistas ou os governos considerados de esquerda depois da crise mundial do ano passado. “Exemplos de projetos inspirados na ideia do socialismos democrático são o alargamento do espaço da universidade pública, o repasse de recursos do Estado para diminuir a desigualdade de renda e a não-submissão do Brasil ao jugo dos países que definem o domínio do capital financeiro”, diz Genro. O “desenvolvimentismo” não necessariamente é considerado uma bandeira de esquerda, e o debate sobre o papel do Estado está situado na órbita do desenvolvimentismo. “Achar que o PT propõe a re-estatização é relativo. A capitalização da Petrobras foi muito importante para o Brasil durante a crise. As grandes empresas sabem que a gestão do PT ajuda o processo de internacionalização das empresas nacionais. O Programa Minha Casa, Minha Vida, teria sido inviável sem a capitalização dos bancos”, afirma a ex-prefeita Marta Suplicy.
Para a esquerda petista, o debate sobre o tamanho do Estado ou o seu poder de intervenção na economia não caracterizam o partido como mais ou menos socialista. Pomar vê, na história interna do partido, o período de 2003 a 2010 como o do debate entre “desenvolvimentistas versus os social-liberais”; hoje, o debate estaria se deslocando para uma polarização entre “desenvolvimentistas conservadores”, que não tocam nas reformas estruturais, e “desenvolvimentistas democrático-populares”, “que querem combinar desenvolvimento com democracia, igualdade e soberania”.
Para Raul Pont, da Democracia Socialista, embora o partido tenha colocado a palavra “socialismo” em seus documentos programáticos novamente, isso não se materializou no governo petista. “Para nós, ser socialista significa democratizar as decisões, aumentar a participação popular no governo”, opina. Para Pont, a proposta socialista não elimina a revisão de privatizações feitas no passado e cujas empresas são prestadoras de serviço ineficientes.
O fato de existirem internamente ainda essas posições, no entanto, não significa que todo o debate sobre o socialismo está liberado. “É preciso evitar fios desencapados”, afirma Genoino. “O idealismo é muito bonito, mas temos que ter cuidado para que isso não seja usado contra a ministra Dilma (Rousseff, candidata do partido à Presidência)”, completa a ex-prefeita Marta Suplicy.
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