quarta-feira, 23 de junho de 2010

Manifesto Ciborgue: Ciência, Tecnologia e Feminismo Socialista

Manifesto Cyborg: Ciência, Tecnologia e Feminismo Socialista na Década de 80*
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Donna Harraway

SONHO IRÔNICO DE UMA LINGUAGEM COMUM PARA AS MULHERES NO CIRCUITO INTEGRADO

Este ensaio é um esforço para construir um mito político, pleno de ironia, que seja fiel ao feminismo, ao socialismo e ao materialismo. Um mito que poderá ser, talvez, mais fiel ‑ na medida em que a blasfêmia possa sê‑lo ‑ do que uma adoração ou uma identificação reverente. A blasfêmia sempre exigiu levar as coisas a sério. Não conheço, dentre as tradições seculares ‑ religiosas e evangélicas da política dos Esta­dos Unidos, incluindo a política do feminismo socialista, nenhuma posição melhor a adotar do que essa. A blasfêmia nos protege da maioria moral interna, ao mesmo tempo em que insiste na necessidade da comunidade. Blasfêmia não é apostasia. A ironia tem a ver com contradições que não se resolvem ‑ ainda que dialeticamente ‑ em totalidades mais amplas: ela tem a ver com a tensão de manter juntas coisas incompatíveis porque todas são necessárias e verdadeiras. A ironia tem a ver com o humor e o jogo sério. Ela constitui também uma estratégia retórica e um método político que eu gostaria de ver mais respeitados no feminismo socialista. No centro de minha fé irônica, de minha blasfêmia, está a imagem do ciborgue.

Um ciborgue é um organismo cibernético, um híbrido de máquina e organismo, uma criatura de realidade social e também uma criatura de ficção. Realidade social significa relações sociais vividas, significa nossa construção política mais importante, significa uma ficção capaz de mudar o mundo. Os movimentos internacionais de mulheres têm construído aquilo que se pode chamar de "experiência das mulheres". Essa experiência é tanto uma ficção quanto um fato do tipo mais crucial, mais político. A libertação depende da construção da cons­ciência da opressão, depende de sua imaginativa apreensão e, portanto, da consciência e da apreensão da possibilidade. O ciborgue é uma matéria de ficção e também de experiência vivida ‑ uma experiência que muda aquilo que conta como experiência feminina no final do século XX. Trata‑se de uma luta de vida e morte, mas a fronteira entre a ficção científica e a realidade social é uma ilusão ótica.

A ficção científica contemporânea está cheia de ciborgues ‑ criaturas que são simultaneamente animal e máquina, que habitam mundos que são, de forma ambígua, tanto naturais quanto fabricados. A medicina moderna também está cheia de cibor­gues de junções entre organismo e máquina, cada qual concebido como um dispositivo codificado, em uma intimidade e com um poder que nunca, antes existiu na história da sexualidade. O sexo‑ciborgue restabelece em alguma medida, a admirável complexidade replicativa das samambaias e dos invertebrados ‑ esses magníficos seres orgânicos que podem ser vistos como uma profilaxia contra o hete­rossexismo. O processo de replicação dos ciborgues está desvinculado do processo de reprodução orgânica. A produção moderna parece um sonho de colonização ciborguiana, um sonho que faz com que, comparativamente, o pesadelo do taylorismo pareça idílico. Além disso, a guerra moderna é uma orgia ciborguiana, codificada por meio da sigla C3I (comando‑controle‑comunicação‑ inteligência) ‑ um item de 84 bilhões de dólares no orçamento militar. Estou argumentando em favor do ciborgue como uma ficção que mapeia nossa realidade social e corporal‑ e também como um recurso imaginativo que pode sugerir alguns frutíferos acoplamentos. O conceito de biopolitica de Michel Foucault não passa de uma débil premonição da política‑ciborgue ‑ uma política que nos permite vislumbrar um campo muito mais aberto.

No final do século XX, neste nosso tempo, um tempo mítico, somos todos quimeras, híbridos teóricos e fabricados ‑ de maquinas e organismo; somos em suma ciborgues. O ciborgue é nossa ontologia; ele determina nossa política. O ciborgue é uma imagem condensada tanto da imaginação quanto da realidade material: esses dois centros, conjugados, estruturam qualquer possibilidade de transformação histórica. Nas tradições da ciência e da política ocidentais (a tradição do capitalismo racista, dominado pelos homens; a tradição do progresso; a tradição da apropriação da natureza como matéria para a produção da cultura; a tradição da reprodução do eu a partir dos reflexos do outro), a relação entre organismo e máquina tem sido uma guerra de fronteiras. As coisas que estão em jogo nessa guerra de fronteiras são os territórios da produção, da reprodução e da imaginação. Este ensaio é um argumento em favor do prazer da confusão de fronteiras, bem como em favor da responsabilidade em sua construção. É também um esforço de contribuição para a teoria e para a cultura socialista-feminista, de uma forma pós‑modernista, não‑naturalista, na tradição utópica de se imaginar um mundo sem gênero, que será talvez um mundo sem gênese, mas, talvez, também, um mundo sem fim. A encarnação ciborguiana está fora da história da salvação. Ela tampouco obedece a um calendário edípico, no qual as terríveis clivagens de gênero se­riam curadas por meio de uma utopia simbiótica oral ou de um apocalipse pós‑edípico. Como argumenta Zoe Sofoulis em Lacklien (seu ensaio, inédito, sobre Jacques Lacan, Melanie Klein e a cultura nuclear), os mais terríveis e talvez mais promissores monstros dos mundos ciborguianos estão corporificados em narrativas não‑edipicas, obedecendo a uma lógica de repressão diferente, a qual, em nome de nossa sobrevivência, precisamos compreender.

O ciborgue é uma criatura de um mundo pós-gênero: ele não tem qualquer compromisso com a bissexualidade, com a simbiose pré-edípica, com o trabalho não‑alienado. O ciborgue não tem qualquer fascínio por uma totalidade orgânica que pudesse ser obtida por meio da apropriação última de todos os poderes das respectivas partes, as quais se combinariam, então, em uma unidade maior. Em certo sentido, o ciborgue não é parte de qualquer narrativa que faça apelo a um estado original, de uma "narrativa de origem", no sentido ocidental, o que constitui uma ironia "final", uma vez que o ciborgue é também o telos apocalíptico dos crescentes processos de dominação ocidental que postulam uma subjetivação abstrata, que prefiguram um eu último, libertado, afinal, de toda dependência ‑ um homem no espaço. As narrativas de origem, no sentido "ocidental", humanista, dependem do mito da unidade original, da idéia de plenitude, da exultação e do terror, representados pela mãe fálica da qual todos os humanos devem se separar ‑ uma tarefa atribuí­da ao desenvolvimento individual e à história, esses gêmeos, e potentes mitos tão fortemente inscritos para nós, na psicanálise e no marxismo. Hilary Klein argumenta que tanto o marxismo quanto a psicanálise, por meio dos conceitos de trabalho, individuação e formação de gênero, dependem da narrativa da unidade original, a partir da qual a diferença deve ser produzida e arregimentada, num drama de dominação crescente da mulher/natureza. O ciborque pula o estágio da unidade original, da identificação com a natureza, no sentido ocidental.

Essa é sua promessa ilegítima, aquela que pode levar à subversão das teleologia que cônbe como guerra nas estrelas.?

O ciborgue está determinadamente comprometido com a parcialidade, a ironia e a perversidade. Ele é oposicionista, utópico e nada inocente. Não mais estruturado pela polaridade do público e do privado, o ciborgue define uma pólis tecnológica baseada, em parte, numa revolução das relações sociais do oikos ‑ a unidade doméstica. Com o cibor­gue, a natureza e a cultura são reestruturadas: uma não pode mais ser o objeto de apropriação ou de incorporação pela outra. Em um mundo de ci­borgues, as relações para se construir totalidades a partir das respectivas partes, incluindo as da pola­ridade e da dominação hierárquica, sao questiona­das. Diferentemente das esperanças do monstro de Frankenstein, o ciborgue não espera que seu pai vá salvá‑lo por meio da restauração do Paraíso, isto é, por meio da fabricação de um parceiro heterossexual, por meio de sua complementação em um todo, uma cidade e um cosmo acabados. O ciborgue não sonha com uma comunidade baseada no modelo da família orgânica.

mesmo que, desta vez, sem o projeto edípi­iR

O ciborgue não reconheceria o Jardim do Éden, não é feito de barro e não pode sonhar em retor­nar ao pó.

E talvez por isso que quero ver se os cibor­gues podem subverter o apocalipse do retomo ao pó nuclear que caracteriza a compulsão maniaca para encontrar um Inimigo.

Os ciborgues não são reve­rentes; eles não conservam qualquer memória do cosmo: por isso, não pensam em recompô‑lo. Eles desconfiam de qualquer holismo, mas anseiam por conexão eles parecem ter uma inclinação natural por uma política de frente unida, mas sem o partido de vanguarda. O principal problema com os cibor­gues é, obviamente, que eles são filhos ilegítimos do militarismo e do capitalismo patriarcal, isso para não mencionar o socialismo de estado. Mas os filhos ile­gítimos são, com frequência, extremamente infiéis às suas origens. Seus pais são, afinal, dispensáveis.

Retomarei, no final deste ensaio, à ficção cienti­fica dos ciborgues, mas quero assinalar agora, três quebras de fronteira cruciais, as quais tornam possível uma análise político‑ficcional (politico‑científica) que se segue. Na cultura científica estadunidense do final do século XX, a fronteira entre o humano animal está completamente rompida. Caíram as últimas fortalezas da defesa do privilégio da singu­laridade [humana] ‑ a linguagem, o uso de instru­mentos, o comportamento social, os eventos mentais; nada disso estabelece, realmente, de forma convincente, a separação entre o humano e o ani­mal. Muitas pessoas nem sequer sentem mais a ne cessidade dessa separação; muitas correntes da Julturã feminista afirmam o prazer da conexão cri­tre o humano e outras criaturas vivas. Os movimen‑' tos em favor dos direitos dos animais não constituem negações irracionais da singularidade humana: eles são um lúcido reconhecimento das conexões que contribuem para diminuir a distância entre a natu­reza e a cultura. Ao longo dos últimos dois séculos, a biologia e a teoria da evolução têm produzido os organismos modernos como objetos de conhecimen­to, reduzindo, simultaneamente, a linha de separa­ção entre os humanos e os animais a um pálido vestigio, o qual se expressa na luta ideológica ou nas disputas profissionais entre as ciências da vida e as ciências sociais. Nesse contexto, o ensino do mo­demo criacionismo cristão deve ser combatido como uma forma de abuso sexual contra as crianças.
A ideologia biológico‑determinista não é a úni­ca posição disponível na cultura cientifica que per­mite que se argumente em favor da animalidade humana. Há um grande espaço para que as pessoas com idéias políticas criticas contestem o significa­do da fronteira assim rompida.' O ciborgue apare­ce como mito precisamente onde a fronteira entre o humano e o animal é transgredida. Longe de' assinalar uma barreira entre as pessoas e os outros seres vivos, os ciborgues assinalam um perturbador e prazerosamente estreito acoplamento entre eles. A animalidade adquire um novo significado nesse ciclo de troca matrimonial.

A segunda distinção sujeita a vazamentos é aquela
entre o animal‑humiano (organismo), de um lado e
a máquina, de outro. As máquinas pré‑cibernéticas
podiam ser vistas como habitadas por_II~:
havia sempre o espectro do fantasma na máquina.
Esse dualismo estruturou a disputa entre o materia­
lismo e o idealismo, a qual foi resolvida por um re­
bento dialético que foi chamado, dependendo do
gosto, de espirito ou de história. Mas, basicamente,
nessa perspectiva, ~às máquinas não eram vistas como
tendo movimento próprio, como se autoconstruin­
do, como sendo autônomas. Elas não podiam reafi­
zar o sonho do homem; só podiam arremedá‑lo.
Elas não eram o homem, um autor para si próprio
mas apenas uma caricatura daquele sonho repro:
dutivo masculinista. Pensar que elas podiam ser
outra coisa era uma paranóia. Agora já não esta­
mos assim tão seguros. As máquinas do final do
século XX tomaram completarnente ambíRua a di­
ferença entre o natural e o artificial, entre a mente
e o corpo, entre aquilo que se autocria e a2uilo
que é externamente criado, podendo‑se dizer o mes­
mo de muitas outras distinções que se costuma­
vam aplicar aos organismos e às máquinas. Nossas
maquinas são perturbadoramente vivas e nós mes­
mos assustadoramente inertes. ‑1

A determinação tecnológica não é o único espa­ço ideológico aberto pelas reconceptualizações que

vêem a máquina e o organismo como textos codi­ficados, textos por meio dos quais nos engajamos no jogo de escrever e ler o mundo.4A "textualiza‑, ção" de tudo, na teoria pós‑estruturalista e na teoria pós‑modernista, tem sido condenad
tas e pelas feministas socialistas, que desconfiam do desprezo utópico que essas teorias devotam às rela­ções de dominação vividas, desprezo que está na base do "jogo" da leitura arbitrária por elas postula­da.' E certamente verdadeiro que as estratégias pôs­modernistas, tal como o meu mito do ciborgue, subvertem uma quantidade imensa de totalidades orgânicas (por exemplo, o poema, a cultura prin‑ii­tiva, o organismo biológico). Em suma, a certeza daquilo que conta como natureza ‑ uma fonte de insight e uma promessa de inocência ‑ é abalada, provavelmente de forma fatal. Perde‑se a autoria/ autoridade transcendente da interpretação e com ela a ontologia que fundamentava a cpistemologia "oci­dental". Mas a alternativa não é o cinismo ou a falta de fé, isto é, alguma versão de uma existência abstra­ta, como as teorias do determinismo tecnológico, que substituem o "homem~' pela "màquJna~' ou a "ação política significativa~' pelo "texto". Saber o que os ciborgues serão é uma questão radical; respondê‑la éuma questão de sobrevivência. Tanto os chimpanzés quanto os artefatos têm uma política. Por que não a teríamos nós? (DE WAAL, 1982‑, WINNER, 1980)
A terceira distinção é um subconjunto da segun­da: a fronteira entre o físico e o não‑fisico é muito imprecisa para nos. Os livros populares de Fisica que se centralizam nas conseqüências da teoria quântica e no princípio da indeterminação são uma espécie de equivalente científico popular da literatura cor‑de­rosa dos romances baratos, sevindo como marcado­res de uma mudança radical na heterossexualidade branca americana: eles erram na interpretação, mas acertam no problema. Os dispositivos microeletrô­nicos são, tipicamente, as máquinas modernas: eles estão em toda parte e são invisíveis. A maquinaria moderna é um deus irreverente e ascendente, arre­medando a ubiqüidade e a espiritualidade do Pa‑i. O chip de silício é uma superfície de escrita; ele está esculpido em escalas moleculares, sendo perturba­do apenas pelo ruido atômico ‑ a interferência su­prema nas partituras nucleares. A escrita, o poder e a tecnologia são velhos parceiros nas narrativas de origem da civilização, típicas do Ocidente, mas a miniaturização mudou nossa percepção sobre a tec­nologia. A miniaturização acaba sij~nificando j2o­d
.~ , ~óe uenonão é ~belo tal ~como o~corre com~os
mísseis ele é, sobretudo, perÍ~so. Contrastem os
TV dos anos 50 ou as cárneras dos
apareU~ós ~de
anos 70 com as TVs de pulso ou com as câmeras de
vídeo que cabem na palma da mão. Nossas melho­
res máquinas são feitas de raios de sol; elas são, to­
das, leves e limpas porque não passam de sinais, de
ondas eletromagnéticas, de uma secção do espec­
tro. Além disso, essas máquinas são eminentemente
portáteis, móveis ‑ um fragmento da imensa dor
humana que é inflingida cotidianamente em Detroit
ou Cingapura. As pessoas estão longe de serem as­
sim tão fluidas, pois elas são, ao mesmo tempo,
materiais e opacas. Os ciborgues, em troca, são éter,
quintessência)

É precisa‑mente a ubiqüidade e a invisibilidade dos ciborgues que faz com que essas minúsculas e leves máquinas sejam tão mortais. Eles são ‑ tanto política quanto materialmente ‑ difíceis de ver. Eles tem a ver com a consciencia ‑ ou com sua simula­ção.' Eles são significantes flutuantes, movimentan­do‑se em caminhõeS7 através da Europa: eles só podem ser bloqueados pelas bruxarias daquelas que são capazes de interpretar as redes ciborguianas de poder ‑ as deslocadas e pouco naturais mulheres de Greenham1 ‑ e não pelos velhos sindicalistas mili­tantes das políticas masculinistas cujos clientes na­rurais dependem dos empregos da indústria militar. Em última instância, a ciência "mais dura" tem a ver com o domínio da maior confusão de fronteiras ‑ o domínio do número puro, do espírito puro, o C11, a criptografia e a preservação de poderosos se­gredos. As novas máquinas são tão limpas e leves! Seus engenheiros são adoradores do sol, mediado­res de uma nova revolução científica, uma revolução associada com o sonho notumo da sociedade pós­industrial. As doenças evocadas por essas máquinas limpas "não passam" de minúsculas mudanças no código de um antígeno do sistema imuriológico, "não passam" da experiência do estresse. Os ágeis dedos das mulheres "orientais"; a antiga fascinação das ga­rotas vitorianas anglo‑saxãs por casas de bonecas; a
J~ atenção ‑ imposta ‑ das mulheres para com a mini­atura ‑ tudo isso adquire novas dimensões nesse mundo. Talvez exista uma Alice‑ciborgue tomando nota dessas novas dimensões. lronicarnente, talvez sejam as unidades políticas construídas pelas mu­[heres‑ciborgue, não‑naturais, que estão fabricando chips na Ásia e dançando em espira19 na prisão de Santa Rita, que poderão servir de orientação para eficazes estratégias oposicionistas.
Assim, meu mito do ciborgue significa frontei‑1 tas trmsgredidas, potentes fusões e perigosas possi­bilidades ‑ elementos que as pessoas progressistas podem explorar como um dos componentes de um necessário trabalho político. Uma de minhas pre­missas afirma que as socialistas e as feministas esta­dunidenses, em sua maioria, vêem profundos dualismos entre mente e corpo, entre animal e má­quina, entre idealismo e materialismo nas práticas sociais, nas formações simbólicas e nos artefatos fí­sicos associados com a "alta tecnologia" e com a cultura científica. Do livro One‑dimensional man (MARCTJSE, 1964) ao livro TheDeath ofNature (MER­CHAInecessariamente, domina­ção; como resposta, elas apelam em favor de um imaginário corpo org~nicó que possa organizar nos­sa resistência. Outra das minhas premissas afirma que a necessidade de uma unidade entre as pessoas que estão tentando resistir à intensificaSção mundial da dominação nunca foi tão urgente. Mas uma inu­dança fiQeiramente perversa de perspe iva pode nos capacitar, de unia forma melhor, para a luta por outros significados, bem como para outras formas de poder e prazer em sociedades tecnoioLyicamente mediadas.
~ De uma certa perspectiva, um mundo de cibor­gues signífica a imposição final de uma grade de controle sobre o planeta‑ significa a abstração final corporificada no apocalipse da Guerra nas Estrelas

‑ uma guerra travada em nome da defesa; significa a apropriação final dos corpos das mulheres numa orgia guerreira masculinista (SoFiA, 1984). De uma outra perspectiva, um mundo de cíborgues pode sig: nificar realidades sociais e corporais vividas, nas quais as pessoas não temam sua estreita afinidade corri_ animais e máquinas, que não temam identidades per­inanentemente parciais e posições contraditórias. A luta política consiste em ver a partir de amb4s as perspectivas ao mesmo tempo, porque cada uma delas revéla tanto dominações quanto possibilida­des que seriam inimagináveis a partir do outro pon­to de vista. Uma visão única produz ilusões piores do que uma visão dupla ou do que a visão de um_ monstro de múltiplas cabeças. As unidades cibor­gulanas são monstruosas e ilegítimas: em nossas presentes circunstâncias políticas, dificilmente po­demos esperar ter mitos mais potentes de resistên­cia e re‑acoplamento. Gosto de imaginar o LAG, o Grupo de Ação de Livermore, como uma espécie de sociedade ciborguiana, dedicada a transformar, de forma realista, os laboratórios que mais ferozmente corporificarti e espalham os instrumentos do apoca. lipse tecnológico ‑ uma sociedade comprometida com a construção de uma formação política que realmen­te consiga juntar ‑ o tempo suficiente para desarmar o estado ‑ bruxas, engenheiros, anciões, pervertidos, cristãos, mães e leninistas. Fissão Impossível é o nome do grupo de afiriidade política em rninha cidade. (Afi­nidade: aparentado não por sangue mas por escolha; a substituição de um grupo nuclear quimico por ou­tro: avidez por afinidade).

IDENTIDADES FRATURADAS
Tem‑se tornado difícil nomear nosso feminismo por um único adjetivo ‑ ou até mesmo insistir na utilização desse nome, sob qualquer circunstância. A consciência da exclusão que é produzida por meio do ato de nomeação é aguda. As identidades pare­cem contraditórias, parciais e estratégicas. Depois do reconhecimento, arduamente conquistado, de que o gênero, a raça e a classe são social e historica­mente constituídos, esses elementos não podem mais formar a base da crença em uma unidade "essen­cial". Não existe nada no fato de ser "mulher" que naturalmente una as mulheres. Não existe nem mes­mo uma tal situação ~ "ser" mulher. Trata‑se, ela própria, de uma categoria altamente complexa, cons­truída por meio de discursos científicos sexuais e de outras práticas sociais questionáveis. A consciência de classe, de raça ou de gênero é uma conquista que nos foi imposta pela terrível experiência histórica das realidades sociais contraditórias do capitalis­mo, do coloni~lismo e do patriarcado. E quem éesse ,nós" que é enunciado em minha própria re­tórica? Quais são as identidades que fundamen­tam. esse mito político tão potente chamado "nós" e o que pode motivar o nosso envolvimento nessa comunidade~ A existência de uma dolorosa frag­mentação entre as feministas (para não dizer "en‑, ire as mulheres"), ao longo de cada fissura possível, tem feito com que o conceito de mulher se tome escorregadio: ele acaba funcionando como uma des­culpa para a matriz clas dominações que as mulheres exercem umas sobre as outras. Para mim ‑ e para

muitas outras mulheres que partilham de uma loca­lização histórica similar (corpos brancos, de classe média profissional, femininos, de esquerda, estadu­nidense, de meia‑idade) ‑ as fontes dessa crise de identidade política são incontáveis. A história re­cente de grande parte da esquerda e do feminismo estadunidense tem sido construída a partir das res­postas a esse tipo de crise ‑ respostas que são dadas por meio de infindáveis cisões e de buscas por uma nova unidade essencial. Mas existe também um ré­conhecimento crescente de uma outra resposta: aquela que se dá por meio da coalizão ‑ a afinidade em vez da identidade."

Chela Sandoval (s.d., 1984) discute, a partir da história da formação da nova voz política representa­da pelas mulheres de cor, 12 um novo modelo de íden­tidade política que ela chama de "consciência de oposição". Esse modelo baseia‑se naquela capacidade de analisar as redes de poder que já foi demonstrada por aquelas pessoas às quais foi negada a participação nas categorias sociais da raça, do sexo ou da classe. A identidade "mulheres de cor" ‑ um nome contestado em suas origens por aquelas pessoas que ele deveria incorporar ‑ produz não apenas uma consciência histórica que assinala o colapso sistemático de to­dos os signos de Homem nas tradições "ocidentais", mas também, a partir da outridade, da diferença e da especificidade, uma espécie de identidade pós‑mo­dernista. Independentemente do que possa ser dito sobre outros possíveis pós ‑modernismos, essa iden­tidade pós‑modernista é plenamente política., A "consciência de oposição" de Sandoval tem a ver com localizações contraditórias e calendários hetero­crônicos e não com relativismos e pluralismos.
Sandoval enfatiza que não existe nenhum crité­
rio essencialista que permita identificar quem é uma
mulher de cor. Ela observa que a definição desse
grupo tem sido feita por meio de uma consciente
apropriação da negação. Por exemplo, uma chicana
ou uma mulher estadunidense negra não pode falar
c~ó~mouma mer (~emeraI ~oucomo ~uma e~ssoa
negra ou como um chicano. Assim, ela está no de­
grau mais baixo de uma hierarquia de identidades
negativas, excluída até mesmo daquelas categorias
oprimidas privilegiadas constituídas por "mulheres
e negros", categorias que reivindicam o teito de te­
rem realizado importantes revoluções.. categoria
~'rrmlher" nega todas as mulheres não‑brancas; a
categoria "negro" nega todas as pessoas não‑negras,
bem como todas as mulheres negras. Mas tampou­
co existe qualquer coisa que se possa chamar de "ela",
tampouco existe qualquer singularidade; o que existe
é um mar de diferenças entre os diversos grupos de
mulheres estadunidenses que têm afirmado sua iden­
tidade histórica como mulheres estadunidenses de~
cor. Essa identidade assinala um espaço construído!
de forma autoconsciente. Sua capacidade de ação~
não pode ter como base qualquer identificação su‑~
postarnente natural: sua base é a coalizão consciente,
a afinidade, o parentesco político." Diferentemente
da identidade "mulher" de algumas correntes do mo­
vimento das mulheres brancas estadunidenses, não
existe, aqui, qualquer naturalização de uma suposta
matriz ídentitária: essa identidade é o produto do
poder da consciência de (>posição.

0 argumento de Sandoval advém de um feminis­mo que incorpora o discurso anticolonialista, isto é, um discurso que dissolve o "Ocidente" e seu produ­to supremo ‑ o Homem, ou seja, aquele ser que não é animal, bárbaro ou mulher, aquele ser que é o autor de um cosmo chamado história. À medida que o ori­entalismo é política e semioticamente desconstruido, as identidades do Ocidente ‑ incluindo as das ferni­nistas ‑ são desestabilizadas.14 Sandoval argumenta que as "mulheres de cor" têm a chance de construir uma eficaz unidade política que não reproduza os sujeitos revolucionários imperializantes e totalizan­tes dos marxismos e feminismos anteriores ‑ movi­mentos teóricos e políticos que têm sido incapazes de responder às conseqüências da desordenada poli­fonia surgida do processo de descolonização.
Katie King, por sua vez, tem discutido os limi­tes do processo de identificação e da estratégia poli­tico‑poética da construção de identidade que faz parte do ato de ler o "poema", esse núcleo gerador do feminismo cultural. King critica a persistente ten­dência, entre as feministas contemporâneas de dife­rentes "momentos" ou "versões" da prática feminista, a taxonomizar o movimento das mulheres, tendên­cia que faz com que as nossas próprias tendências políticas pareçam ser o telos da totalidade. Essas ta­xonomias tendem a refazer a história feminista, de modo que essa história pareça ser uma luta ideoló­gica entre categorias coerentes e temporalmente contínuas ‑ especialmente entre aquelas unidades típicas conhecidas como feminismo radical, femi­nismo liberal e feminismo social ista‑feminista. To­dos os outros feminismos ou são incorporados ou são marginalizados, em geral por meio da constru­ção de uma ontologia e de uma epistemologia explí­citas." As taxoriornias do feminismo produzem epistemologias que acabam por policiar qualquer po­sição que se desvie da experiência oficial das mulhe­res. Obviamente, a "cultura das muflicres", tal como a cultura das mulheres de cor, é criada, de forma cons­ciente, pelos mecanismos que estimulam a afinidade, destacando‑se os riruais da poesia, da música c de certas formas de prática acadêmica. A política da raça e a politica da cultura estão, nos movimentos das mulheres dos Estados Unidos, estreitamente interli­gadas. Aprender como forjar uma unidade poético­política que não reproduza uma lógica da apropriação, da incorporação e da identificação taxonômica ‑ esta é a contribuição de King e de Sandoval.
A luta teórica e prática contra a uiiidade‑por­meio‑da‑domina~ão ou contra a unidade‑por‑meio­da‑incorporação implode, ironicamente, não apenas as justificações para o patriarcado, o colonialismo, o huma‑nismo, o positivismo, o essencialismo, o cien­tificismo e outros "ismos", mas também todos os apelos em favor de um estado orgânico ou natural. Penso que os feminismos radicais e socialistas ‑mar­xistas têm implodido também suas/nossas próprias estratégias cpistemológicas e que isso constirui um passo valioso para se imaginar possíveis unidades politicas. Resta saber se existe alguma "epistemolo­gia", no sentido ocidental, que possa nos ajudar na tarefa de construir afinidades eficazes.

É importante observar que no esforço para se construir posições revolucionárias, as episternologias ‑ enquanto conquistas das pessoas comprometidas

com a mudança do mundo ‑ têm feito parte do pro­cesso de demonstração dos limites da construção de identidade. As corrosivas ferramentas da teoria pós­modernista e as construtivas ferramentas do discur­so ontológico sobre sujeitos revolucionários parecem constituir aliados irónicos na dissolução dos eus oci­dentais, uma dissolução que se dá no interesse da sobrevivência. Estamos dolorosamente conscientes do que significa ter um corpo historicamente cons tituído. Mas com a perda da inocência sobre nossa origem, tampouco existe qualquer expulsão do Jar­dim do Éden. Nossa politica perde o consolo da culpa juntamente com a naiveté da inocência. Mas, sob que outra forma se apresentaria um mito políti­co para o feminismo socialista? Que tipo de política poderia adorar construções parciais, contraditórias, permanentemente abertas, dos eus pessoais e cole­tivos e, ainda assim, ser fiei, eficaz e, ironicamente, femiiústa‑socialista?

Não conheço nenhuma outra época na história na qual tenha havido uma maior necessidade de unidade política, a fim de enfrentar, de forma efi­caz, as dominações de "raça", de "gênero", de "se­xualidade" e de "classe". Tampouco conheço qualquer outra época na qual o tipo de unidade que nós podemos ajudar a construir tenha sido possível. Nenhuma de "nós" tem mais a capacidade material para ditar a "elas", a quaisquer delas, a forma que a realidade deve ter. Ou, no mínimo, "nós" não po­demos a‑legar inocência na prática dessas domina­ções. As mulheres brancas, incluindo as feministas socialistas, descobriram a não‑mocéncia da catego­ria "mulher" (isto é, foram forçadas, aos pontapés e aos gritos, a se darem conta disso). Essa consciência muda a geografia de todas as categorias anteriores; ela as desnatura, da mesma forma que o calor dês­natura uma proteína frágil. As feministas ‑ciborguel" têm que argumentar que "nós" não queremos mais nenhuma matriz identitária natural e que nenhuma' construção é uma totalidade. A inocência, bem como a conseqüente insistência na condição de vítima como a única base para a compreensão e a análise, já causou suficientes estragos. Mas o sujeito revolu­cíonário construído deve dar às pessoas do século XX também algum descanso. Na refrega das identi­dades e nas estratégias reflexivas para construí‑Ias, abre‑se a possibilidade de se tecer algo mais do que a mortalha para o dia após o apoca‑lipse, que tão profeticamente conclui a história da salvação.
Tanto os feminismos marxistas/socialistas quan­to os feminismos radicais têm naturalizado e, simul­taneamente, desnaturado a categoria "mulher" e a consciência das vidas sociais das "mulheres". Uma caricatura esquemática talvez possa esclarecer am­bos os tipos de operações. O socialismo marxiano está enraizado em uma análise do trabalho assalari­ado que revela a estrutura de classes. A conseqüên­cia da relação assalariada é a alienação sistemática, na medida em que o trabalhador (SI'C) é separado de seu produto. A abstração e a ilusão governam em questões de conhecimento; a dominação governa em questões de prática. O trabalho é a categoria privilegiada, permitindo que o marxista supere a ilu­são e encontre aquele ponto de vista que é necessá­rio para mudar o mundo. O trabalho é a atividade humanizante que faz o homem; o trabalho é uma

categoria ontológica que possibilita o conhecimen­to do sujeito e, assim, o conhecimento da subjuga­ção e da alienação.
Em uma fiel filiação, a aliança com as estratégias analíticas básicas do marxismo permitiu que o femi­nismo‑socialista avançasse. A principal conquista tan­to dos feminismos marxistas quanto dos feminismos socialistas foi a de ampliar a categoria "trabaflio" para acomodar aquilo que (algumas) mulheres faziam, mesmo quando a relação assalariada estava subordinada a uma visão, mais abrangente do trabalho sob o patriarcado capitalista. Em particular, o trabalho das mulheres na casa e a atividade das mulheres, em geral, como mães (isto é, a reprodução no sentido socialista‑feminista), foram introduzidos na teoria com base em uma analogia com o conceito marxia­no de trabalho. A unidade das mulheres, aqui, re­pousa em uma cpistemologia que se baseia na estrutura ontológica do "trabalho". O feminismo­marxista/socialista não "naturaliza" a unidade; tra­ta‑se de uma possível conquista que se baseia em uma possível posição enraizada nas relações sociais. A operação essencializadora está na estrutura onto­lógica do trabalho ou na estrutura de seu análogo (a
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atividade das mulheres). A herança do humanismo marxiano com seu eu eminentemente ocidental é o que, para num, constitui a dificuldade. A contribui­ção dessas formulações está na ênfase da responsabi­lidade cotidiana de mulheres reais na construção de unidades e não em sua naturalização.
O feminismo radical de Catherine MacKinnon é uma caricatura das tendências apropriadoras, in­corporadoras e totalízadoras das teorias ocidentais que


I‑
vêem na identidade o fundamento da a‑ç ão. 17 É factu­al e politicamente errado assimilar toda a variedade das "perspectivas" ou toda a variedade dos "momen­tos" do chamado "feminismo radical" à versão apre­sentada por MacYinnori. A lógica teleológica de sua teoria mostra como uma epistemologia e uma onto­logia ‑ incluindo suas negações ‑ anulam ou polici­am a diferença. A reescrita da história do polimórfico campo chamado "feminismo radical" é apenas um dos efeitos da teoria de MacK=»Ofi. O efeito princi­pal é a produção de uma teoria da experiência e da identidade das mulheres que representa uma espécie de apocalipse para todas as perspectivas revolucioná­rias. Isto é, a totalização inerente a essa fábula do ferninismo radical atinge sua finalidade ‑ a uruidade política das mulheres ‑ ao impor a experiência do não‑ser radical e seu testemunho. Para o feminism.o marxista/socialista, a consciência é uma conquista e não um fato natural. A teoria de MacKinnon elimi­na, na verdade, algumas das dificuldades inerentes àconcepção humanista do sujeito revolucionário, mas ao custo de um reducionismo radical.

MacKinnori argumenta que o feminismo adota, necessariamente, uma estratégia analítica diferente daquela do marxismo, olhando, em primeiro lugar, não para a estrutura de classes, mas para a estrutura de sexo/gênero e para a relação que a produz ‑ a relação pela qual as mulheres são constituídas pelos homens e são sexualmente apropriadas por eles. lro­nicamente, a ontologia de MacKinnon constrói um não‑sujeito, um não‑ser. O desejo de um outro e não o trabalho de produção do eu é a origem da "mulher". Ela desenvolve, portanto, uma teoria da

consciência que impõe aquilo que conta como experi­ência das "mulheres" ‑ qualquer coisa que nomeie a violação sexual; na verdade, no que diz respeito às mu­lheres, o próprio sexo. A prática feminista é, nessa pers­pectiva, a construção dessa forma de consciência; isto é, o autoconhecimento de um eu‑que‑não‑é.
Perversamente, a apropriação sexual ainda tem, nesse feminismo, o status epístemológico do traba­lho, isto é, o trabalho é o ponto a partir do qual uma análise capaz de contribuir para mudar o mundo deve fluir. Mas a bbjetificação sexual e não a alienação é a conseqüência da estrutura de sexo/gênero. No domí­nio do conhecimento, o resultado da objetificação sexual é a ilusão e a abstração. Entretanto, a mulher não é simplesmente alienada de seu produto: em um sentido profundo, ela não existe como sujeito, nem mesmo como sujeito potencial, uma vez que ela deve sua existência como mulher à apropriação sexual. Ser constituída pelo desejo de um outro não é a mesma coisa que ser alienada por meio da separação violenta do produto de seu próprio trabalho.
A teoria da experiência desenvolvida por MacKin­non é extremamente totalizadora. Ela não marginali­za a autoridade da fala e da ação política de qualquer outra mulher‑ ela as elin‑iina. Trata‑se de uma totali­zação que produz aquilo que o próprio patriarcado ocidental não conseguiu ‑ o sentimento de que as mulheres não existem a não ser como produto do desejo dos homens. Penso que MacKinnon, está cor­reta ao argumentar que as teorias marxistas não po­dem fundamentar~ de forma adequada, a unidade política das mulheres. Mas ao resolver, com propósitos

r‑

feministas, o problema das contradições do sujeito revolucionário ocidental, ela desenvolve uma dou­trina da experiência ainda mais autoritária. Eu quês­tiono as perspectivas socialistas/marxianas por eliminarem, de forma involuntária, a diferença ‑ vi­sível no discurso e na prática anticoloniais ‑ radical e polivocal, isto é, aquela diferença que não pode ser assimilada. Mas a eliminação intencional de toda diferença, por meio do artifício da não‑existência Ç(essencial", é ainda mais problemática.
Em minha taxonomia, que como em qualquer outra, é uma re‑inscrição da história, o feminismo radical pode acomodar qualquer atividade feminina identificada pelas feministas socialistas como forma de trabalho apenas se essa atividade puder, de algu­ma forma, ser sexualizada. A reprodução tem dífe­rentes conotações para as duas tendências ‑ para uma, ela está enraizada no trabalho; para a outra, no sexo‑ ambas chamam as conseqüências da domi­nação e o desconhecimento da realidade social e pessoal de "fàsa consciência".

Para além de quaisquer das dificuldades ou das con­tribuições do argumento de qualquer autora ou autor particular; nem as perspectivas marxistas nem as pers­pectivas ferainistas radicais têm se contentado com explicações parciais; ambas se constituírain regularmen­te como totalidades. As teorias feministas ocidentais não deixam por menos: de que outra maneira pode­riam as autoras ocidentais incorporar aquelas que são suas outras? Cada uma delas tentou anexar outras formas de dominação, expandindo suas cate­gonas básicas por meio de analogias, de simples listagens ou de acréscimos. Uma das principais e devastadoras

conseqüências disso é a existência de um silêncio cons­trangedor, entre as radicais brancas e as feministas so­cialistas, sobre a questão da raça. A história e o polivocalismo desaparecem em meio às taxonomias políticas que tentam instituir genealogias. Não há ne­nhum espaço estrutural para a raça (ou para muita coisa mais) em teorias que pretendem apresentar a construção da categoria "mulher" e do grupo social "mulheres" como um todo unificado ou totalizável. A estrutura de minha caricatura ficaria assim:

Feminismo socialista: estrutura de classe trabalho assalariado H alie‑

k

nação
trabalho ‑ por analogia: reprodução; por exten­são: sexo‑ por acréscimo: raça
Feminismo radical:
estrutura de gênero apropriação sexual obje­tificação
sexo ‑ por analogia: trabalho; por extensão: re­produção; por acréscimo: raça
A teórica francesa, Julia Kristeva, afirma em ou­
tr
gru o istorico ‑ e i . colin a uerra
juntamente com outros grupos como, por exemplo,
~a =uvent~u e. Sua datas são duvidosas ‑ mas estamos
agor . acostumados a lembi
conhecimento e como atores históricos, a "raça" nem
sempre existiu, a "classe" tem uma gênese histórica
e os "homossexuais" são bastante recentes.. Não é
por acaso que o sistema simbólico da família do
homem ‑ e, portanto, a essência da mulher – entra em colapso no mesmo momento em que as redes
de conexão entre as pessoas no planeta se tornam,
de forma sem precedentes, múltiplas, pregnantes e
complexas. O conceito de "capitalismo avançado" é
inadequado po rã descrever a estrutura desse momeri­
to histórico. O que está em io ‑ 11 oci‑
‑ go, na conexão
dental"é‑o fim do homem. Não é por acaso q% em nosso tempo, a "mulher" se desintegra em "mu­lheres". E possível que as feministas socialistas não tenham sido substancialmente culpadas de produ­zir uma teoria essencialista que eliminou a particu­laridade das mulheres e os seus interesses contradi­tórios. Mas penso que temos sido culpadas, sim, no mínimo por nossa irrefletida participação na lógica, nas linguagens e nas práticas do humanismo branco e na nossa busca de um fundamento único para a dominação que assegurasse nossa voz revolucioná­ria. Temos, agora, menos desculpas. Mas ao nos tornarmos conscientes de nossos fracassos, arrisca­mos cair em uma diferença ilimitada, desistindo da complicada tarefa de realizar conexões parciais, reais. Algumas diferenças são lúdicas‑ outras são pólos de sistemas históricos mundiais de dominação. "Epis~‑temologia" significa conhecer a diferença.

A INFOPLMÁTICA DA DOMINAÇÃO

Nesta tentativa de desenvolver uma perspectiva epistemológica e política, gostaria de esboçar a ima­gem de Lima possível unidade política, uma ima­gem que deve muito aos princípios socialistas e feministas de planejamento político. A moldura para minha imagem é determinada pela extensão e pela, importância dos rearranios das relações sociais, mundialmente, nas áreas de ciência e tecnologia. Em uma ordem mundial emergente, análoga, em sua novidade e abrangência, àquela criada pelo capita­lismo industrial, argumento em favor de uma polí­tica enraizada nas demandas por mudanças fundamentais nas relações de classe, raça e gênero. Estamos em meio à mudança: de uma sociedade industrial, orgânica, para um sistema polimorfo informacional; de uma situação de "só trabalho" para uma situação de "só lazer". Trata‑se de um jogo mortal. Simultaneamente materiais e ideológicas, as dicotomias aí envolvidas podem ser expressas por meio do seguinte ~4Úadro, que resume a transiça
das velhas e confortáveis dominações hierárquicas para as novas e assustadoras redes que chamei de "informática da dominação":

RepresennSão
Romance burguês, realismo
Organismo

Simulação
Ficção científica, pós‑modernismo
Componente biótico
Profundidade, integridade Superfície, fronteira
Calor
Biologia como prática clínica
Fisiologia

Ruído
Biologia como inscrição
Engenhar+de comunicação
Pequeno grupo Subsistema
Perfeição Otimizaçáo
Eugenia

Controle populacional
Decadéncia,»»tanhama~ica Obsolescência,
Choque dofuturo
Higiene Administração do estresse
Microbiologia, tuberculose Imunologia, AIDS
Divisão orgânica do trabalho Ergonornia/cibernética do trabalho
Especialização funcional Construção modular

1
1

Reprodução Replicação
Especialização do papel social Estratégias genéticas otimizadas
com base no sexo orgânico
Determinismo biológico Inércia evolucionária, restrições
Ecologia comunitária
Cadeia racial do ser

Ecosistema
Neo‑imperialismo, humanismo das
Nações Unidas
Administração cientfflca na Fábrica global/rrabalho feito em casa
casa/fábrica
Família/Mercado/Fábrica

por meio das tecnologias eletrônicas
Mulheres no circuito integrado
Salário‑família Valor comparável
Público/Privado
Natureza/CuIrura
Cooperação
Freud
Sexo
Trabalho
Mente
Segunda Guerra Mundial

Cidadania do tipo "ciborgue"
Campos de diferença
Reforço na comurucação
Lacan
Engenharia genética
Robótica
Inteligéncia artificial
Guerra nas estrelas
Patriarcado capitalista branco Informática da dominação

Essa lista sugere diversas coisas interessantes." Em primeiro lugar, os objetos situados no lado di­reito não podem ser compreendidos como "natu­rais", o que nos impede de comprender como natu­rais também os objetos do lado esquerdo. Não podemos voltar ao passado ‑ ideológica ou material­mente. Não se trata apenas de que "deus" está mor­to: a "deusa" também está. Ou, se quisennos, pode­mos vê‑los, a ambos, como revivificados nos mundos das políticas microeletrônica e biotecnológica. Em relação a objetos tais como componentes bióticos, devemos pensar não em termos de propriedades es­senciais, mas em termos de projeto, restrições de fronteira, taxas de fluxo, lógica de sistemas, custos para se reduzir as restrições. A reprodução sexual éum tipo, entre muitos, de estratégia reprodutiva, com custos e benefícios que são uma função do ambiente sistêmico. As ideologias da reprodução sexual não poderão mais, de forma razoável, apelar a concep­ções sobre sexo e sobre papéis sexuais, com o argu­mento de que constituiriam aspectos orgânicos de objetos naturais tais como organismos e famílias. Um tal raciocínio será desmascarado como sendo irracio­nal: os executivos das grandes corporações que lêem Playboy e as feministas radicais que são contra a por­nografia formarão, ironicamente, um estranho par no desmascaramento conjunto do irracionalismo.
Tal como ocorre com a raça, as ideologias sobre a diversidade humana têm que ser formuladas em termos de freqüências de pa‑râmetros, tais como gru­pos sanguíneos ou resultados de testes de inteligên‑
1
cia. E "irracional" invocar conceitos como Ccprimitivo" e "civilizado". Para as liberais e as radi­cais, a busca de sistemas sociais integrados cede lu­gar a uma nova prática chamada "etnografia experimental", na qual um objeto orgânico desapa­rece como tal em resposta ao jogo lúdico da escrita. Em termos ideológicos, o racismo e o colonialismo expressam‑se, agora, em uma linguagem que fala em desenvolvimento e subdesenvolvimento, em graus e níveis de modernização. Pode‑se pensar qual­quer objeto ou pessoa em termos de desmontagem e remontag em ‑ não existe nenhuma arquitetura "na­tural" que determine como um sistema deva ser pla­nejado. Os centros financeiros de todas as cidades do mundo, bem como as zonas de processamento de exportação e de livre comércio, proclamam este fato elementar do "capitalisino tardio": o universo inteiro dos objetos que podem ser cientificamente conhecidos deve ser formulado como um problema de engenharia de comunicação (para os administra­dores) ou como uma teoria do texto (para aqueles que possam oferecer resistência). Trata‑se, em am­bos os casos, de semiologias ciborguianas.
As estratégias de controle irão se concentrar nas condições e nas interfaces de fronteira, bem como nas taxas de fluxo entre fronteiras, e não na suposta integridade de objetos supostamente naturais. A "in­tegridade" ou a "sinceridade" do eu ocidental cede lugar a procedimentos decisórios e a sistemas espe­cializados. Por exemplo, as estratégias de controle aplicadas às capacidades das mulheres para dar à luz a novos seres humanos serão desenvolvidas em uma linguagem que se expressará em termos de controle populacional e de maximização da realização de ob­jetivos, concebendo‑se esses últimos como um pro­cesso individual de tomada de decisão. As estratégias de controle serão formuladas em termos de taxas, custos de restrição, graus de liberdade. Os seres hu­manos, da mesma forma que qualquer outro com­ponente ou subsistema, deverão ser situados em uma arquitetura de sistema cujos modos de operação bá­sicos serão probabilísticos, estatísticos. Nenhum objeto, nenhum espaço, nenhum corpo é, em si, sa­grado‑ qualquer componente pode entrar em uma relação de interface com qualquer outro desde que se possa construir o padrão e o código apropriados, que sejam capazes de processar sinais por meio de uma linguagem comum. A troca, nesse mundo,

transcende à tradução universal ‑efetuada pelos mer­cados capitalistas, tão bem analisada por Marx. Nes ‑‑" se universo, a patologia privilegiada, uma patologia que afeta todos os tipos de componentes, é o estresse ‑ um colapso nas comunicações (HOGNESs, 1983). O ciborgue não está sujeito à biopo ítica de Foucault; o ciborgue simula a política, uma característica que oferece um campo muito mais potente de atividades.
Esse tipo de análise de objetos científicos e cul­turais de conhecimento, surgidos historicamente a) partir da Segunda Guerra Mundial, prepara‑nos para perceber algumas importantes inadequações na te­oria feminista, a qual se desenvolve como se os du­alismos organicos e hierárquicos que ordenaram o discurso no "ocidente", desde Aristóteles, ainda go­vernassem. Esses dualismos foram canibalizados ou, como diria Zoe Sofia (SOFOULIS), eles foram "tec­nodigeridos". As dic*otornias entre mente e corpo, animal e humano, organismo e máquina, público e privado, natureza e cultura, homens e mulheres, i primitivo e civilizado estão, todas, ideologicamente em ques tão. A situação real das mulheres é definida por sua integração/exploração em um sistema mun­dial de produção/reprodução e comunicação que se pode chamar de "informática da dominação". A casa, o local de trabalho, o mercado, a arena pública, o próprio corpo, todos esses locais podem ser disper­sados e entrar em relações de interface, sob formas quase infinitas e polimórficas, com grandes conse­quencias para as mulheres e outros grupos ‑ con­sequencias que são, elas próprias, muito diferentes para as diferentes pessoas, o que faz com que seja difícil imaginar fortes movimentos internacionais de oposição, embora eles sejam essenciais para a so­brevivência. Um dos caminhos importantes para se reconstruir a política ferminista‑socialista é por meio de uma teoria e de uma prática dirigidas para as relações sociais da ciência e da tecnologia, incluin­do, de forma crucial, os sistemas de mito e de signi­ficado que estruturam nossas imaginações. O ciborgue é um tipo de eu ‑ pessoal e coletivo ‑ pós‑ 1 moderno, um eu desmontado e remontado. Esse e, o eu que as feministas devem codificar.
As tecnologias de comunicação e as biotecnolõ­gias são ferramentas cruciais no processo de remode­lação de nossos corpos. Essas ferramentas corporifi­cam e impõem novas relações sociais para as mulheres no mundo todo. As tecnologias e os discursos cientí­ficos podem ser parcialmente compreendidos como formalizações, isto é, como momentos congelados das fluidas interaçoes sociais que as constituem, mas eles devem ser vistos também como instrumentos para a imposição de significados. A fronteira entre ferramenta e mito, instrumento e conceito, sistemas históricos de relações sociais e anatomias históricas dos corpos possíveis (incluindo objetos de conheci­mento) é permeável. Na verdade, o mito e a ferra­menta são mutuamente constituídos.

Além disso, as ciências da comunicação e as bio­logias modernas são construídas por uma operação comum ‑ a
tmdttfão do mundo em termos de um pro­bk~ dc codÍfica~ã~I, isto é, a busca de uma linguagem comum na qual toda a resistência ao controle ins­trumental desaparece e toda a heterogeneidade pode ser submetida à desmontagem, à remontagem, ao investimento e à troca.

Nas ciências da comunicação, podemos ver exem­plos dessa tradução do mundo em termos de um pro­blerna de codificação nas teorias de sistema ciberné­ticas (sistemas controlados por meio de
feedback) aplicadas à tecnologia telefômica, ao d_‑s~qn de com­putadores, ao emprego de armas de guerra ou à cons­trução e à manutenção de bases de dados. Em cada caso, a solução para as questões‑chave repousa em uma teoria da linguagem e do controle; a operação­chave consiste em determinar as taxas, as direções e as probabilidades do fluxo de uma quantidade cha­m ada informação. O mundo é subdividido por fron­teiras diferencialmente permeáveis à informação. A informação é apenas aquele tipo de elemento quanti­ficável (unidade, base da unidade) que permite uma tradução universal e, assim, um poder universal sem interferências, isto é, aquilo que se chama de "comu­nicaçao eficaz". A maior ameaça a esse poder é cons­tituída pela interrupção da comunicação. Qualquer colapso do sistema é uma ffinção do estresse. Os ele­mentos fiindamentais dessa tecnologia podem ser con­densados na metáfora C11 (comando‑controle‑comu­nicação‑inteligência) ‑ o símbolo dos militares para sua teoria de operações.
Nas biologias modernas, a tr. dução do mundo~
~C'
em termos de um problema de codificação pode ser ilustrada pela biologia molecular, pela ecologia, pela teoria evolucionária sociobiológica e pela imuno­biologia. Nesses campos, o organismo é traduzido em termos de problemas de codificação genética e de leitura de códigos. A biotecnologia ‑ uma tecno­logia da escrita ‑ orienta a pesquisa em geral. 19 Em' um certo sentido, os organismos deixaram de existir como objetos de conhecimento, cedendo lugar a com­ponentes bióticos, isto é, tipos especiais de dispositi‑ ívos de processamento de informação. Vêem‑se' mudanças análogas na ecologia ao se examinar a his­tória e a utilidade do conceito de ecossistema. A imu_~ nobiologia e as práticas médicas que lhe são associadas constituem exemplos ricos do privilégio que os siste­mas de codificação e de reconhecimento têm como õbjetos de conhecimento, como construções, por nós, de realidades corporais. A biologia é, nesse caso, uma espécie de criptografia. A pesquisa é necessariamente uma espécie de atividade de inteligência. As ironias abundam. Um sistema estressado fica enlouquecido‑, seus processos de comunicação entram em colapso; > ele deixa de reconhecer a diferença entre o eu e o outro. Os corpos humanos com corações de babuí­nos provocam uma perplexidade ética nacional ‑ tanto para os ativistas dos direitos dos animais quanto para os guardioes da pureza humana. Nos Estados Uni­dos, os homens gays e os usuários de drogas por via intravenosa são as vítimas privilegiadas de uma hor­rível doença do sistema imunológico que marca~1Íns­‑creve no corpo~a confusão de front&as e a poluiç~o moral (TREicHL4_ji,‑1~87).
Mas essas incursões nas ciências da comunica­ção e na biologia têm sido feitas em um nível ra feito; existe uma realidade mundana, em grande parte econômica, que sustenta minha afirmação de 1 que essas ciências e essas tecnologias indicam, para nós, transformações fundamentais na estrutura do jnundo. As tecnologias da comunicação dependem da eletrônica. Os estados modernos, as corpora­ções multinacionais, o poder militar, os aparatos

do estado de bem‑estar, os sistemas de satélite, os processos políticos, a fabricação de nossas imagina­ções, os sistemas de controle do trabalho, as cons­truções médicas de nossos corpos, a pornografia comercial, a divisão internacional do trabalho e o evangelismo religioso dependem, estreitamente, da eletrônica. A microeletrônica é a base técnica dos simulacros, isto é, de cópias sem originais.
A microeletrônica está no centro do processo que faz a tradução do trabalho em termos de robótica e de processamento de texto, do sexo em termos de engenharia genética e de tecnologlas reprodutivas e da mente em termos de inteligência artificial e de procedimentos de decisão. As novas biotecnologias têm a ver com mais coisas do que simplesmente re­produção humana. Como uma poderosa ciência da engenharia para redesenhar materiais e processos, a biologia tem implicações revolucionárias para a in­dústria, talvez mais óbvias hoje em áreas conic
mentação, agricultura e energia. As ciências da comun~a ão e _a biologia, caracterizam‑se como construções de objetos tecno‑naturais de conheci­mento, nas quais a diferença entre máquina e orga­nismo toma‑se totalmente borrada; a mente, o corpo' e o instrumento mantêm, entre si, uma relação de grande intimidade. A organização material "multi­nacional" da produção e reprodução da vida cotidi­ana, de um lado, e a organização simbólica da produção e reprodução da cultura e da imaginação, de outro, parecem estar igualmente implicadas nes‑/ se processo. As imagens que supõem uma manu­tenção das fronteiras entre a base e a superestrutura, o público e o privado ou o material e o ideal nunca pareceram tão frágeis.
Tenho utilizado o conceito ‑ inventado por Rã­chel Grossman (1980) ‑ de "mulheres no circuito integrado", para nomear a situação das mulheres em um mundo tão intimamente reestruturado por meio das relações sociais da ciência e da tecnõlo‑
20 ilizei a circurilocução "as relações soci ais da
g a.
Ia ‑‑ Uti ciência e da tecnologia" para indicar que não esta­mos lidando com um determinismo tecnológico, mas com um sistema histórico que depende de rela­ções estruturadas entre as pessoas. Mas a frase deve‑‑­ria também indicar que a ciência e a tecnologia, fornecem fontes renovadas de poder, que nós preci­samos de fontes renovadas de análise e de ação po­lítica (LATOUR, 1984). Alguns dos rearranjos das dinâmicas da raça, do sexo e da classe, enraizados nas relações sociais propiciadas pela cultura
h~qh‑tech, podem tornar o feminismo‑socialista mais relevan­te para uma política progressista eficaz.

A "ECONOMIA DO TRABALHO
CASEIRO" FORA DE "CASA~'

A "Nova Revo1u~ão Industrial" está produz uma nova classe trabalhadora mundial, bem como novas sexualidades e etnicidades. A extrema mobili­dade do capital e a nova divisão internacional do tra­balho estão interligadas com a emergência de novas coletividades e com o enfraquecimento dos agrupa­mentos familiares. Esses acontecimentos não são neu­tros em termos de gênero nem em termos de raça. Nas sociedades industriais avançadas, os homens

brancos têm se tornado vulneráveis, de uma manei­ra nova, à perda permanente do emprego, enquan­to as mulheres não têm perdido seus empregos na mesma proporção que os homens. Não se trata sim­plesmente do fato de que as mulheres dos países do Terceiro Mundo são a força de trabalho preferida das multinacionais dos setores de processamento de exportação, particularmente do setor eletrônico, cuja produção está baseada na ciência. O quadro é mais sistemático e envolve reprodução, sexualidade, cul­tura, consumo e produção. No paradigmático Silli­
con Valley, muitas mulheres têm suas vidas estruturadas em torno de empregos baseados na ele­trônica e suas realidades íntimas incluem monoga­mia heterossexual em série, cuidado infantil negociado, distância da família ampliada ou da mai­or parte das formas tradicionais de comunidade, uma grande probabilidade de uma vida solitária e uma extrema vulnerabilidade econômica à medida que en­velhecem. A diversidade étnica e racial das mulheres do Sillicon Va&‑y forma um microcosmo de diferen­ças conflitantes na cultura, na família, na religião, na educação e na linguagem.
Richard Gordon chamou essa nova situação de "econon‑úa do trabalho caseiro"." Embora ele inclua o fenômeno do trabalho caseiro propriamente dito, que está emergindo em conexão com a linha de mon­tagem do setor eletrônico, Gordon quer nornear; com a expressão "economia do trabalho caseiro", uma re­estruturação do trabalho que, de forma geral, tem as características anteriormente atribuídas a trabalhos femininos, trabalhos que são feitos, estritamente, por mulheres. O trabalho está sendo redefinido ao mes­mo tempo como estritamente feminino e como fe­minizado, seja ele executado, nesse último caso, por homens, ou por mulheres. Ser ferninizado significa: tornar‑se extremamente vulnerável; capaz de ser des­montado, remontado, explorado como uma força de trabalho de reserva‑ que as pessoas envolvidas são vistas menos como trabalhadores/as e mais como ser­vos/as, sujeito a arranjos do tempo em que a pessoa ora está empregada num trabalho assalariado ora não,
ri f
um in eliz arremedo da idéia de redução do dia de trabalho; levar uma vida que sempre beira a ser obs­cena, deslocada e reduzível ao sexo. A desqualifica­ção é uma velha estratégia aplicável, de forma renovada, a trabalhadores/as anteriormente privile­giados/as. Entretanto, o conceito de "economia do trabalho caseiro" não se refere apenas à desqualifica­ção em larga escala, nem pretende negar que estão emergindo novas áreas de alta qualificação, inclusive para mulheres e homens anteriormente excluídos do emprego qualificado. Em vez disso, o conceito quer indicar que a fábrica, a casa e o mercado estão inte­grados em uma nova escala e que os lugares das mu­lheres são cruciais ‑ e precisam ser malisados pelas diferenças existentes entre as mulheres e pelos signí­ficados das relações existentes entre homens e mu­lheres, em várias situaçoes.
A economia do trabalho caseiro, considerada como uma estrutura organizadonal capitalista mundial, tor­na‑se possível por meio das novas tecnologias, embo­ra não seja causada por ela. O êxito do ataque contra os empregos relativamente privilegiados dos trabalha­dores masculinos siridicalizados ‑ em grande parte

brancos ‑ está ligado à capacidade que têm as novas tecnologias de comunicação de integrar e controlar os trabalhadores, apesar de sua grande dispersão e des­centralização. As conseqüências das novas tecnologias são sentidas pelas mulheres tanto na perda do salário­família (masculino) ‑ quando elas chegaram a ter acesso a esse privilégio dos brancos ‑ quanto no caráter de seus próprios empregos, os quais estão se tomando capital‑intensivo como, por exemplo, no trabalho de escritório e na enfermagem.
Os novos arranjos economicos e tecnológicos es­tão relacionados também à decadência do estado do bem‑estar e à conseqüente intensificação da pressão sobre as mulheres para que assumam o sustento da vida cotidiana tanto para si próprias quanto para os homens, crianças e pessoas mais velhas. A feminiza­ção da pobreza ‑ gerada pelo desmantelarnento do estado de bem‑estar, pela economia do trabalho ca­seiro, na qual empregos estáveis são a exceção, e sus­tentada pela expectativa de que os salários das mulheres não serão igualados aos salários masculi­nos ‑ tornou‑se um grande problema. O fato de que um número crescente de lares são chefiados por mulheres está relacionado à raça, à classe ou à sexu­alidade. A generalização desse processo deveria le­var à construção de coalizões entre as mulheres, organizadas em torno de várias questões. O fato de que o sustento da vida cotidiana cabe às mulheres como parte de sua forçada condição de mães não énenhuma novidade; o que é novidade é a integra­ção de seu trabalho à economia capitalista global e a uma economia que progressivamente se torna cen­trada em torno da guerra. Por exemplo, nos Estados


Unidos, a pressão sobre as mulheres negras que con­seguiram filgir do serviço doméstico (mal) remune­rado e que agora são, em grande número, empregadas em escritónio ou similar tem grandes implicações para a pobreza persistente das pessoas negras cmn empre­go. As mulheres adolescentes das áreas industrializa­das do Terceiro Mundo vêem‑se crescentemente reduzidas à única ou principal fonte de renda para suas famílias, ao mesmo tempo que o acesso à terra é, mais do que nunca, problemático. Esses processos têm coriseqüêncías importantes para a psicodu'‑iâinica e a política do gênero e da raça.
No quadro das três principais fases do capitalis­mo (comercial/industrial inicial, monopolista, multi­nacional) ligadas, respectivamente, ao nacionalismo, ao imperialismo e ao multinacionalismo e relaciona­das, também respectivamente, aos três períodos esté­ticos dominantes de Jameson (realismo, modernismo e pós‑modernismo), eu argumentaria que formas es­pecíficas de famílias relacionam‑se dialeticamente com aquelas formas de capitalismo e com as correspon­dentes formas políticas e culturais mencionadas. Embora vividas de forma problemática e desigual, as formas ideais dessas famílias podem ser esquemati­zadas como: 1) a família nuclear patriarcal, estrutu­rada pela dicoton‑iia entre o público e o privado e acompanhada pela ideologia burguesa branca de se­paração entre a esfera pública e a privada e pelo femi­nismo burguês anglo‑americano do século XIX‑ 2) a família moderna mediada (ou imposta) pelo estado de bem‑estar e por instituições como o salário‑fainí­lia, com um florescimento de ideologias heterosse­xuais a‑feministas, incluindo suas versões críticas

desenvolvidas em GreenwIch Village, em torno da Primeira Guerra Mundial; e 3) a "família" da econo­mia do trabalho caseiro, caracterizada por sua con­traditória estrutura de casas chefiadas por mulheres, pela explosão dos feminismos e pela paradoxal inten­sificação e erosão do próprio gênero.
Esse é o contexto no qual as projeções para o de­semprego estrutural, como conseqüência das novas tecnologias, se tomam, mundialmente, parte do qua­dro da economia do trabalho doméstico. À medida que a robótica e as tecnologias que lhe são relaciona­das expulsam os homens do emprego nos países "de­senvolvidos" e tomam mais difícil gerar empregos masculinos nos países "em desenvolvimento" do Ter­ceiro Mundo e à medida que o escritório automati­zado se torna a regra mesmo em países com reserva de trabalhadores, a femá‑úzação do trabalho intensi­fica‑se. As mulheres negras nos Estados Urflidos sa­bem desde há muito tempo o que significa enfrentar o subemprego estrutural ("feminização") dos homens negros, bem como sua própria e altarnente vulnerá­vel posiçao na economia salarial. Não é mais um se­gredo que a sexualidade, a reprodução, a família e a vida em comunidade estão interligadas com essa es­trutura econômica sob infinitas formas, contribuin­do também para produzir diferenças entre a situação das mulheres brancas e a situação das mulheres ne­gras. Um número maior de mulheres e homens ver­se‑á frente a situações similares, o que fará com que alianças que atravessem o genero e a raça, formadas em torno das questões ligadas à sustentação básica da vida (com ou sem empregos), se tornem necessá­rias e não apenas desejáveis.

As novas tecnologias têm também um efeito pro­fundo sobre a fome e a produção de alimentos para a subsistência. Rae Lessor Blumberg (1983) calcula que as mulheres produzem 50 por cento da alimentação de subsistência do mundo .22 A‑s mulheres são, em geral, excluídas dos beneficios da crescente mercanti­lização
hob‑tcch dos alimentos e dos produtos agrí­colas energéticos; seus dias se tomam mais árduos porque suas responsabilidades na preparação de ali­mento não diminuíram‑ e suas situações reproduti­vãs se tomam mais complexas. As tecnologias da Revolução Verde interagem com a produção indus­trial h~qh‑tech para alterar a divisão sexual do traba­lho bem como para transformar os padrões de mizração de acordo com o gênero.
As novas tecnologias parecem estar profundamen­te envolvidas naquelas formas de "privatização" ana­lisadas por Ros Petc~esky (1981), nas quais se combinam, de forma sinergética, o processo de mili­tariza~ão, as ideologias e as políticas públicas sobre questões de família, desenvolvidas pela direita, e as redefinições das concepções de propriedade (empre­sarial e estatal), a qual passa a ser vista como exclusiva­i da~
mentepriva As novas tecnologias decomunicaçáo são ftindamentais para a erradicação da "vida pública" de todas as pessoas. Isso facilita o florescimento de uma instituição milítar
h~qh‑tcch permanente, com prejuízos culturais e econômicos para a maioria das pessoas, mas especialmente para as mulheres. Técno­logias como videogames e aparelhos de televisão ex­tremamente miniaturizados parecem cruciais para a ~rodução de formas modernas de "vida privada". A cultura dos videogárnes é fortemente orientada para

a competição individual e para a guerra espacial. De­_~envo1ve‑s_e_, ‑‑a‑q‑u‑'1,‑~e‑m‑‑‑‑c‑o‑‑.nL‑e‑‑x‑ão‑‑‑‑‑‑coma_dinímica de gênero, uma imaginação
h~qh‑tech, uma imaginação que pode contemplar a possibilidade da destruição do planeta, permitindo, como se fosse uma ficção cientí­fica, que se escape às suas conseqüências. Muitas ou­trás coisas, além de nossan'‑nagmaçao, são militarizadas. E outras conseqüências da guerra eletrônica e nuclear são inescapáveis. São essas as tecnologias que prome‑ ' tem a mobilidade última e a troca perfeita, pemútindo também, incidentalmente, que o turismo, essa prática perfeita de mobilidade e troca, apareça, se considera­do isoladamente, como uma das maioi
do mundo.
As novas tecnologias afetam as relações sociais tan­to da sexualidade quanto da reprodução, e nem sem­pre da mesma forma. Os estreitos vínculos entre a sexualidade e a instnimentalidade ‑ uma visão sobre o corpo que o concebe como uma espécie de máqui­na de maximização da satisfação e da utilidade priva­das ‑ são descritos de forma admirável, nas histórias sociobiológicas sobre origem que enfatizam o cálcu­lo genético e descrevem a inevitável dialética da do­minação entre os papéis sexuais feminino e masculino.' Essas histórias sociobiológicas baseiam­se em uma visão
k~gh‑tcch do corpo ‑ uma visão que o concebe como um componente biótico ou como urrisisterna cibernético de comunicação. Uma das mais importantes transformações da siruação repro­dutiva das mulheres dá‑se no campo médico, no qual as fronteiras de seus corpos se tomam permeáveis, de uma nova forma, à "visualização" e à "interven­ção" das novas tecnologias. Obviamente, saber quem


controla a interpretação das fronteiras corporais na hermenêutica médica é uma questão feminista im­portantíssima. O espéculo tornou‑se, nos anos 70, um símbolo da reivindicação das mulheres pela reto­mada do controle de seu corpo. No contexto das prá­ticas de reprodução cibernéticas, esse instrumento artesanal parece inadequado para expressar a política do corpo necessária na negociação das novas realida­des que aí surgem. A auto‑ajuda não é suficiente. As tecnologias da visualização relembram a importante prática cultural de se caçar com a câmera, bem como a natureza profundamente predatória de uma cons­ciência fotográfica.21 O sexo, a sexualidade e a repro~ ~~£ão são atores centrais nos sistemas mitológicos,
h~qh‑tech_ que estruturam a nossa imaginação sobre nossas possibilidades pessoais e sociais.
Outro aspecto crítico das relações sociais envol­vidas nas novas tecnologias é a reformulação das expectativas, da cultura, do trabalho e da reprodu­ção da grande força de trabalho empregada nas in‑, dústrias técnicas e científicas. Um dos grandes riscos sociais e políticos é o constituído pela formação de uma estrutura social fortemente bimodal, na qual uma grande massa de mulheres e homens perten­centes aos grupos étnicos, e especialmente as pesso­as de cor, ficam confinadas à economia do trabalho caseiro, aos diversos analfabetismos, à impotência e à redundância gerais e são controladas por aparatos ~~epressivos
h~qh‑teck que vão do entretenimento àIvigilância e ao extermínio. Uma política socialista­feminista adequada deveria se dirigir às mulheres nas categorias ocupacionais privilegiadas e, particu­larmente, na produção daquela ciência e daquel

1 ;Itecnologia responsáveis pela construção dos discur­sos, dos processos e dos objetos tecnocientíficos .26_
Essa questão é apenas um dos aspectos do estudo
das possibilidades de uma ciência feminista, mas ela
é extremamente importante. Que tipo de papel cons­
titutivo na produção do conhecimento, da imagina­
ção e da prática podem ter os novos grupos que estão
fazendo ciência? De que forma esses grupos podem
se aliar com os movimentos sociais e políticos pro­
gressistas? Como se pode construir alianças políticas
que reúnam as mulheres ao longo das hierarquias tec­
nocientíficas que nos separam? Haverá formas de se
desenvolver uma política feminista de ciência e tec­
nologia, em aliança com os grupos de ação antimili­
tares que advogam uma conversão dos equipamentos
cientfflcos para fins pacíficos? Muitos trabalhadores
e trabalhadoras téctilicos e cientfficos do Silicon Valley,
incluindo os cowbüys
h~qh‑teck, não querem trabalhar
na ciência militar .27 Será possível reunir essas prefe­
rencias pessoais e essas tendências culturais em uma
política progressista numa classe média profissional
na qual as mulheres, incluindo as mulheres de cor,
estão se tomando bastante numerosas?

AS MULHERES NO CIRCUITO INTEGRADO

Deixem‑me sintetizar o quadro da localização his­tórica das mulheres nas sociedades industriais avan­çadas, considerando que essas posições foram rees­truturadas, em parte, por meio das relações sociais da ciência e da tecnologia. Se foi, alguma vez, possí­vel caracterizar ideologicamente as vidas das mulhe­res por meio da distinção entre os domínios público

r

e privado, uma distmição que era sugerida por ima­gens de uma vida operária dividida entre a fábrica e a, casa‑ de uma vida burguesa dividida entre o mercado e a casa; de uma vida de gênero dividida entre os domínios pessoal e político, não é suficiente, agora, nem mesmo mostrar como ambos os termos dessas dicotomias se constroem mutuamente na prática e na teoria. Prefiro a imagem de uma rede ideológica ‑ o que sugere uma profusão de espaços e identida­des e a permeabilidade das fronteiras no corpo pes­soal e no corpo político. A idéia de "rede" evoca tanto uma prática feminista quanto uma estratégia empresarial multinacional. ‑ tecer é uma atividade­para ciborguês oposicionistas. ‑‑‑‑‑‑‑
Deixem‑me, pois, retornar a uma imagem ante­rior, a da informática da dominação, e esboçar uma visão do "lugar" das mulheres no circuito integra­do, assinalando apenas umas poucas e idealizadas localizações sociais, vistas, primariamente, do pon­to de vista das sociedades capitalistas avançadas: Casa, Mercado, Local de Trabalho Assalariado, Es­tado, Escola, Hospital‑Clínica e Igreja. Cada um desses espaços idealizados está lógica e praticamente iniplicado em qualquer outro locus, talvez de for­ma análoga a uma fotografia holográfica. Gostaria de invocar o impacto das relações sociais que são mediadas e impostas pelas novas tecnologias, a fim de ajudar a formular uma análise e um trabalho prático que são extremamente necessários. Entre­tanto, não há nenhum "lugar" para as mulheres nessas redes, apenas uma geometria da diferença e da contradição, crucial às identidades ciborguia­nas das mulheres. Se aprendermos a interpretar

!essas redes de poder e de vida social, poderemos construir novas alianças e novas coalizões. Não há como ler a seguinte lista a partir de uma perspectiva identitária, a partir da perspectiva de um eu unitário. O importante é a dispersão. A tarefa consiste em sobreviver na diáspora.
Casa: lares chefiados por mulheres; rnonoga­mia em série‑ fuga dos homens‑ mulheres de ida­de vivendo sozinhas; tecnologia do trabalho doméstico; trabalho de casa remunerado; reemer­gência da indústria do trabalho pouco qualificado, feito em casa; empresas e serviços de comunicaçao sediados em casa‑ indústria eletrônica caseira; sem­teto urbanos; rifigração; arquitetura modular; família nuclear reforçada (de forma simulada) ‑ violência do­méstica intensa.

Mercado: persistência do trabalho de consumo das mulheres, alvos renovados do estímulo a com­prar grande quantidade de novas produções das novas tecnologias (especialmente à medida que a competiçao entre as naçoes industrializadas e as na­ções em vias de industrialização, para evitar o de­semprego em massa, precisa encontrar novos e cada vez maiores mercados para mercadorias de necessi­dade cada vez menos clara) ‑ poder de compra bi­~modal, combinado com uma publicidade que se dirige aos numerosos grupos afluentes e negligen­cia os mercados de massa de períodos anteriores; importância crescente do mercado informal de tra­balho e do mercado informal de bens, os quais co­existem com as estruturas de mercado afluentes, h~qh‑tech; sistemas de vigilância por meio da trans­ferência eletrônica de dinheiro; intensificação da

abstração mercantil (mercantilização) da expeniên­cia, resultando em teorias de comunidade utópicas ineficazes ou, equivalentemente, em teorias cínicas; mobilidade extrema (abstração) dos sistemas de mer­cantilização/financiamento‑ interpenetração entre o mercado sexual e o mercado laboral,‑ sexualização intensificada do consumo abstraio e alienado.

Local de trabalho remunerado: persistência e in­tensificação da divisão racial e sexual do trabalho, mas considerável crescimento da entrada em cate­gorias ocupacionais privilegiadas para multas mu­lheres brancas e pessoas de cor; impacto das novas tecnologias sobre o trabalho das mulheres no setor de serviço, no trabalho de escritório, na manufatura (especialmente nos setores têxteis), na agricultura e na eletrônica; reestruturação internacional das clas­ses operárias,‑ desenvolvimento de novos arranjos de tempo para facilitar a economia do trabalho do­méstico (tempo flexível, tempo parcial, tempo ex­tra, nenhum tempo); trabalho feito em casa e trabalho terceirizado‑ pressão crescente por estru­turas salariais dualizadas; número significativo de assalariados, no mundo todo, que não têm nenhu­ma experiencia ou mais nenhuma esperança de um emprego estável; uma maioria da força de trabalho que se torna "marginal" ou "feminizada".
Estado: continuidade da erosão do estado de bem‑estar; processos de descentralização juntamente com uma vigilância e um controle crescentes‑ cida­dania exercida por meio da telemática; imperialis­mo e, em geral, poder político, baseado na diferença entre quem é rico e quem é pobre em termos de informação‑ uma crescente militarizaçãoh~qh‑tech,

contraposta a uma crescente oposição por parte de muitos grupos sociais; redução dos empregos no fun­cionalismo público, como resultado do fato de que o trabalho de escritório está se tornando, de forma cres­cente, capital‑intensivo, com implicações para a mo­bilidade ocupacional das mulheres de cor; crescente privatização da vida e da cultura material e ideoló­gica‑ estreita íntegração entre a privatização e a mili­tarização ‑ as formas h~qh‑tcch de vida pública e pessoal capitalista burguesa; invisibilidade mútua en­tre os diferentes grupos sociais, ligada a mecanismos psicológicos de crença em inimigos abstratos.
Escola: vínculos aprofundados entre as necessi­dades do capital h~qh‑tech e a educação pública em todos os níveis, diferenciados por raça, classe e gé­nero; as classes executivas envolvidas na reforma educacional e no refinanciamento, às custas das re­manescentes estruturas educacionais democráticas e progressistas para as crianças e os/as professores/ as; educação para a ignorância em massa e a repres­são, em uma cultura militarizada e tecnocrática; cres­cimento dos cultos místicos anticientíficos em movimentos dissidentes e políticos radicais; persis­tência de um relativo analfabetismo científico entre mulheres brancas e pessoas de cor; crescente orien­tação industrial da educação (especialmente a edu­cação superior), sob a liderança das multinacionais da produção baseada na ciência (particularmente as companhias que dependem da biotecnologia e da eletrônica); elites altamente educadas e numerosas, em uma sociedade progressivamente bimodal.
Clínica‑hospital: intensificação das relações máqui­na‑corpo; renegociações das metáforas públicas que


expressam a experiência pessoal do corpo, particular­mente em relação à reprodução, às fúrições do siste­ma imunológico e aos fenômenos de estresse; intensificação da política reprodutiva, em resposta às implicações históricas mundiais do controle poten­cial, mas irrealizado, das mulheres sobre sua relação com a reprodução; emergência de doenças novas, his­toricamente específicas ‑ lutas em tomo dos significa­dos e dos meios da saúde em ambientes permeados por produtos e processos de alta tecnologia; conti­nuidade da feminização do trabalho em saúde‑ in­tensificação da luta em torno da responsabilidade do estado pela saúde‑ persistência do papel ideológico dos movimentos populares de saúde, como uma for­ma importante de política nos Estados Unidos.

Igreja: pregadores "supersalvadores" e funda­mentalistas eletrônicos que celebram a união do ca­pital eletrônico com deuses‑fetiche automatizados; intensificação da importância das igreJas na resis­tência ao estado militar; luta central em torno dos significados e da autoridade na religião; persistên­cia da relevância da espiritualidade, interligada com o sexo e a saúde, na luta política.
A única forma de caracterizar a informática da dominação é vê‑Ia como uma intensificação massiva da insegurança e do empobrecimento cultural, com UM fracasso generalizado das redes de subsistência para os mais vulneráveis. Uma vez que grande parte desse quadro está conectado com as relações sociais da ciência e da tecnologia, é óbvia a urgência de uma política socialista‑feminista dirigida para a ciência e a tecnologia. Há muita coisa sendo feita e as bases para um trabalho político são muito ricas. Um exemplo

~1_

do desenvolvimento de formas de luta coletiva para as mulheres envolvidas em trabalho assalariado é o das empregadas ligadas à secção 925 do Sindicato Internacional dos Empregados no Setor de Serviços. Essas formas de luta estão profundamente ligadas àreestruturação técnica dos processos de trabalho e às modificações das classes trabalhadoras. Essas lutas es­tão também propiciando uma compreensão mais .~abrangente da organização do trabalho, incluindo questões como a comunidade, a sexualidade e a fa­mília, questões que não eram privilegiadas nos sindi­catos industriais dominados, em grande parte, por pessoas brancas do sexo masculino.

Os rearranjos estruturais ligados às relações sociais da ciência e da tecnologia apresentam uma forte ambivalência. Mas não é necessário desesperar‑se com as implicações das relações das mulheres do final do século XX com o trabalho, a cultura, a pro­dução de conhecimento, a sexualidade e a reprodu­ção. Por excelentes razoes, os marxismos vêeffi‑~ melhor a dominação, mas têm dificuldades em com‑
preender a falsa consciência e a cumplicidade da li
s pessoas no processo de sua própria dominação, no capitalismo tardio. É importante lembrar que o que se perde, com esses rearranjos, especialmente do pon­to de vista das mulheres, está, com freqüência, ligado a formas virulentas de opressão, as quais, em face da violência existente, são nostalgicamente naturaliza­.das. A ambivalência para com as unidades rompidas por meio das culturas
hoh~tech exige que não classifi­quemos a consciência entre, de um lado, uma "crítica lúcida, como fundamento de uma sólida epistemo­logia política" e, de outro, uma "consciência falsa
clip_image002.jpg
e manipulada", mas que tenhamos uma sutil'com' preensão dos prazeres, das experiências e dos pode­rês emergentes, os quais apresentam um forte potencial para mudar as regras do jogo.
Há razões para esperança, quando se consideram as bases que surgem para novos tipos de unidade política que atravessem a raça, o gênero e a classe, àmedida que esses elementos centrais da análise socia­lista‑ferná‑iista passam, eles próprios, por múltiplas transformações. Não são poucas as dificuldades ex­peri‑mentadas na interação com as relações sociais da ciência e da tecnologia. Mas o que estarnos vivendo não é transparentemente claro e nos faltam conexões suficientemente sutis para construir, de forma coleti­vã, teorias sobre a experiência que tenham alguma eficácia. Os presentes esforços ‑ marxistas, psicanalí­ticos, fernínistas, antropológicos ‑ para darificar já não digo a experiência dos "outros", mas a "nossa" própria experiência, são rudimentares.
Estou consciente da estranha perspectiva propi­ciada por minha posição histórica ‑ um doutorado em Biologia para uma moça irlandesa católica tor­nou‑se possível por causa do impacto do Sputnik na política de educação científica dos Estados Uni­dos. Tenho um corpo e uma mente construídos tanto pela corrida armamentista e pela guerra fria que se seguiram à Segunda Guerra Mundial quanto pelos movimentos das mulheres. Há mais razoes para a esperança quando consideramos os efeitos contradi­tórios das políticas dirigidas a produzir tecnocrataS estadunidenses leais ‑ as quais também produzem um grande número de dissidentes ‑ do que quando nos concentramos nas derrotas atuais.

A parcialidade permanente dos pontos de vista feministas tem conseqüências para ‑nossas expecta­tivas relativamente a formas de organização e parti­cipação políticas. Para trabalhar direito, não temos necessidade de uma totalidade. O sonho feminista sobre uma linguagem comum, como todos os so­nhos sobre uma linguagem que seja perfeitamente verdadeira, sobre uma nomeação perfeitamente fiel da experiência, é um sonho totalizante e imperialista. Nesse sentido, em sua ansiá por resolver a contradi­ção, também a dialética é uma linguagem de sonho. Talvez possamos, ironicamente, aprender, a partir de nossas fusões com animais e máquinas, como não ser o Homem, essa corporificação do logos ocidental. Do ponto de vista do prazer que se tem nessas po­tentes e interditadas fusões, tornadas mievitáveis pe­las relações sociais da ciência e da tecnologia, talvez possa haver, de fato, uma ciência feminista.

CIBORGUES: UM MITO
DE IDENTIDADE POLíTICA

Quero concluir com um mito sobre identidades e sobre fronteiras, o qual pode inspirar as imagina­ções políticas do final do século XX. Sou devedora, nessa história, a escritoras e escritores como Joanna Russ, Samuel R. Delany, John Varley, James Tip­tree Jr. [pseudôninio de Alice Sheldon], Octavia Bufler, Monique Wittig e Vonda McIrityre, que são nossos/as contadores/as de histórias, explorando o que significa ‑ em mundos
high‑tech ‑7_ser corporifi­cado.11 São os/as teóricos/as dos ciborgues. Ao ex­plorar concepções sobre fronteiras corporais e ordem


r
~pcía1, a antropóloga Mary Douglas (1966, 1970) ajuda‑nos a ter consciência sobre quão fundamental é a imagistica corporal para a visão de mundo e, des­sa forma, para a linguagem política. As feministas francesas, como Luce Irigaray e Monique Wittig, apesar de todas as suas diferenças, sabem como es­crever o corpo, como interligar erotismo, cosmolo­gia e política, a partir da imagística da corporificação e, especialmente para Wittig, a partir da imagística da fragmentação e da reconstituição de corpos.29
Feministas radicais estadunidenses, como Susan Griffin, Audre Lorde e Adrienne Rich, têm afetado profundamente nossas imaginações políticas, mes­mo que restringindo demasiadamente, talvez, aqui­lo que nós pensamos como sendo uma linguagem corporal e política amigável.1O Elas insistem no or­gânico, opondo‑o ao tecnológico. Mas seus siste­mas simbólicos, bem como as perspectivas que lhe são relacionadas (o ecofeininismo e o paganismo feminista), repleto de organicismos, só podem ser compreendidos como ‑ para usar os termos de San­doval ‑ ideologias de oposição adequadas ao final do século XX. Elas simplesmente chocam qualquer pessoa que não esteja preocupada com as máquinas e a consciência do capitalismo tardio. Assim, elas são parte do mundo do ciborgue. Mas existem tam­bém grandes vantagens para as feministas em não abraçar explicitamente as possibilidades inerentes ao colapso das distinções nítidas entre organismo e máquina, bem como as distinções similares que és­truturam o eu ocidental. É a simultaneidade dos i colapsos que rompe as matrizes de dominação e ~abre possibilidades geométricas. O que pode ser

aprendido a partir da poluição "tecnológica" políti­ca e pessoal? Examino a seguir, brevemente, dois grupos superpostos de textos, por seu
ins~qht para a construção de um mito do ciborgue que seja poten­cialmente útil: de um lado, as construções feitas por mulheres de cor e, de outro, a construção de eus monstruosos, feita na ficção científica feminista.
Sugeri, anteriormente, que as "mulheres de cor'; poderiam ser compreendidas como uma identidade cíborgue, uma potente subjetividade, sintetizada a partir das fusões de identidades forasteiras e nos complexos estratos político‑históricos de sua "bio­mitografia", Zami (Lorde, 1982; King, 1987a, 1.987b). Há cartografias materiais e culturais que mapeiam esse poterícial. Audre Lorde (1984) apre­ende esse tom no título de seu livro,
Sister outsider (Irmã forasteira). Em meu mito político, a Sister outsider é a mulher de além‑mar, a qual as mulheres estadunídenses ‑ femininas e feminizadas ‑ devem, supostamente, ver como o inimigo que impede sua solidariedade, que ameaça sua segurança. No conti­nente, dentro das fronteiras dos Estados Unidos, a Sis~er outsid‑‑r constituí um potencial, em meio às raças e às identidades étnicas das mulheres manipu­ladas pela divisão, pela competição e pela explora­ção nas mesmas indústrias. As "mulheres de cor" são a força de trabalho preferida das indústrias ba­seadas na ciência, são as mulheres reais que o mer­cado sexual, o mercado de trabalho e a política da reprodução mundiais lançam no rodopio caleidos­cópico da vida cotidiana. As jovens mulheres corca­nas contratadas pela indústria do sexo e pela linha de montagem eletrônica são recrutadas nas escolas

i


P~_

secundárias e educadas para o circuito integrado. O ser alfabetizada, especialmente em inglês, distingue a força de trabalho feminina "barata", tão atrativa para as multinacionais.
Contrariamente aos estereótipos orientalistas do
"primitivo oral", o alfabetismo é uma marca especial
das mulheres de cor, tendo sido adquirido pelas mu­
lheres negras estadunidenses, bem como pelos ho­
mens,, por meio de uma história na qual eles e elas
arriscaram a vida para aprender e para ensinar a ler e
a escrever. A escrita tem um siÊ~ificado especial para
todos os grupos colonizados. A escrita tem sido cru­
cial para _à mito ocidental da distinção entre culturas
orais e escritas, enGe mental~i e civili­
zaã~_M_'ãi_s_r_e~c_e~ntemente, essas distinções têm sido
desconstruídas por aquelas teorias pós‑modernas que
atacam o falogocentrisino do ocidente, com sua ado­
ração do trabalho monoteísta, fálico, legitimizado e
singular ‑ o nome único e perfeito." Disputas em
torno dos significados da escrita são uma forma im­
portante da luta política contemporânea. Liberar o
jogo da escrita é uma coisa extremamente séria. A
poesia e as histórias das mulheres de cor estaduni­
denses dizem respeito, repetidamente, à escrita, ao
acesso ao poder de significar; mas desta vez o poder
não deve ser nem f~lico nem inocente. A escrita‑ci­
borgue não tem a ver com a Queda, com a fantasia
de uma totalidade que, "era‑uma‑vez~', existia antes da
linguagem, antes da escrita, antes do Homem. A es­
cnta‑ciborgue tem a ver com o poder de sobreviver,
não com base em uma inocência original, mas com
base na tornada de posse dos mesmos instrumentos
para marcar o mundo que as marcou como outras.

Os instrumentos são, com freqüéncia, histórias) recontadas, que invertem e deslocam os dualismos h* erárquicos de identidades naruralizadas. Ao recon­tar as histórias de origem, as autoras‑ciborgue sub­vertem os mitos centrais de origem da cultura ocidenta =emos, todas, sido colonizadas por esses mitos de origem, com sua ansia por uma plenitude que seria realizada no apocalipse. As histórias
falei~
gocêntricã_s:de origem mais cruciais para as cibor­gues feministas estão contidas nas tecnologias ‑tecnologias que escrevem o mundo, como a biotec­nologia e a microeletrônica ‑ da letra, da inscrição que têm, recentemente, textualizado nosso,
como problemas de código sobre a grade do C11 As histórias feministas sobre ciborgues têm a tarefa de recodificar a comunicação e a inteligência a fim de subverter o comando e o controle.
A política da linguagem permeia, figurativa e li­teralmente, as lutas das mulheres de cor; as histórias sobre linguagem têm uma força especial na rica es­crita contemporânea das mulheres estadunidenses de cor. Por exemplo, as recontagens da história da mulher índia Malinche, mãe da raça "bastarda" mes­tiça do novo mundo, senhora das línguas e amante de Cortez, carregam um signíficado especial para as construções chicanas da identidade. Cherãe Mora­ga (1983), erriLoving in
the waryean, explora o tema da identidade, quando não se possuía a linguagem original, quando nunca se havia contado a história original, quando nunca se havia morado na harmo­nia da heterossexualidade legítima no jardim da cul­tura e, assim, não se podia basear a identidade em um mito ou em uma queda da inocência e no direito


a nomes naturais, o da mãe ou o do pai.12 A escrita de Moraga, seu alfabetismo extraordinário, é apre­sentada em sua poesia como o mesmo tipo de viola­ção do domínio da língua do conquistador por Malinche ‑ uma violação, uma produção ilegítima, que permite a sobrevivência. A linguagem de Mo­raga não é "inteira", ela é autoconsciente ente par­tida, uma quimera feita de uma mistura de inglês e
aistadores. Mas é esse
monstro quimérico, sem nenhuma reivindicação em
favor de uma língua original existente antes da vio­
lação, que molda as identidades eróticas, competeri­
tes, potentes, das mulheres de cor. A Sister outsid‑‑r
sugere a possibilidade da sobrevivência do mundo
não por causa de sua inocência, mas por causa de
sua habilidade de viver nas fronteiras, de escrever
sem o mito fundador da inteireza original, com seu
inescapável apocalipse do retorno final a uma uni­
dade mortal que o Homem tem imaginado como
sendo a Mãe inocente e todo poderosa, libertada,
no Fim, de uma outra espiral de apropriação, por
seu filho. A escrita marca o corpo de Moraga, afir‑,
ma‑o com 1 o o corpo de uma mulher de cor, contra a:
possibilidade de passar para a categoria não‑marca­
da do pai anglo ou para o mito orientalísta do "anal­
fabetismo original" de uma mãe que nunca foí
Malinche era, aqui, mãe, e não Eva, antes de comer
o fruto proibido. A escrita afirma a síster outsider,
não a Mulher‑antes‑da‑queda‑na‑escrita, exigida pela
falogocêntrica Família do Homem.
A escrita é, preeminentemente, a tecnologia dos ‑A/Ciborgues ‑ superfícies gravadas do final do século XX. A política do ciborgue é a, luta pela linguagem._C~

(a luta contra a comunicação perfeita, contra o código Itiãícõ que ‑e~_d__uz rodo significado de forma perfeita ‑ o dogina central do falogocentrismo. É por isso que a política do ciborgue insiste no ruído e advoga a poluição, tirando prazer das ilegítimas fusões entre animal e máquina. São esses acoplamentos que ror­riam o Homem e a Mulher extremamente problemá­ticos, subvertendo a estrutura do desejo, essa força que se imagina corno sendo a que gera a linguagem e o genero, subvertendo, assim também, a estrutura e os modos de reprodução da identidade "ocidental", da natureza e da cultura, do espelho e do olho, do escravo e do serilior. "Nós" não escolhemos, origi­nalmente, ser ciborgues. A idéia de escolha está na, base, de qualquer forma, da política liberal e da epís‑
temologia que imaginam a reprodução dos indivíduos 1,
antes das replicações mais amplas de "textos". 7
Libertadas da necessidade de basear a política em uma posição supostamente privilegiada com re­lação à experiência da opressão, incorporando, nes­se processo, todas as outras dominações, podemos, da perspectiva dos ciborgues, vislumbrar possibili­dades extremamente potentes. Os feminismos e os marxismos têm dependido dos imperativos episte­mológicos ocidentais para construir um sujeito re­volucionário, a partir da perspectiva que supõe existir uma hierarquia entre diversos tipos de opressões e/ ou a partir de uma posição latente de superioridade moral, de inocência e de uma maior proximidade corri a natureza. Sem poder mais contar com ne­nhum sonho original relativamente a uma lingua­gem comum, nem com uma simbiótica natural que prometa uma proteção da separação "masculina"


hostil, estamos escritas no jogo de um texto que não tem nenhuma leitura finalmente privilegiada nem qualquer história de salvação. Isso faz com que nos reconheçamos como plenamente implicadas no mun­do, fibertando‑nos da necessidade de enraizar a polí­tica na identidade, em partidos de vanguarda, na pureza e na maternidade. _Despida da identidade, a raça bastarda ensina sobre o poder da margem e so­bre a importância de uma mãe como Malinche. As mulheres de cor tranformam‑na, de uma mãe diabó­fica, nascida do medo masculinista, em uma mãe ori­ginalmente alfabetizada que ensina a sobrevivência.
Isso não é apenas uma desconstrução literária, mas uma transformação limiar. Toda história que começa com a inocência original e privilegia o re­tomo à inteireza imagina que o drama da vida éconstituído de individuação, separação, nascimento do eu, tragédia da autonomia, queda na escrita, alie­nação; isto é, guerra, temperada pelo repouso ima­ginário no peito do Outro. Essas tramas são governadas por uma política reprodutiva ‑ renasci­mento sem falha, perfeição, abstração. Nessa trama, as mulheres são imaginadas como estando em uma situação melhor ou pior, mas todos concordam que elas têm menos "eu", uma individuação mais fraca, mais fusão com o oral, com a Mãe, menos coisas em jogo na autonomia masculina. Mas existe um outro caminho para ter menos coisas em jogo na autonomia masculina, um caminho que não passa pela Mulher, pelo Primitivo, pelo Zero, pela Fase do Espelho e seu imaginário. Passa pelas mulheres e por outros ciborgues no tempo‑presente, ilegítimos, não nascidos da Mulher, que recusam os recursos

ideológicos da vitimização, de modo a ter uma vida real. Esses ciborgues são as pessoas que recusam de­saparecer quando instados, não importa quantas vezes um escritor "ocidental" faça comentários so­bre o triste desaparecimento de um outro grupo organico, primitivo, efetuado pela tecnologia "oci­dental", pela escrita.` Esses ciborgues da vida real~ (por exemplo, as mulheres trabalhadoras de uma aldeia do sudeste asiático, nas empresas eletrÔnicas japonesas e estadunidenses descritas por Aihwa Ong) estão ativamente reescrevendo os textos de seus corpos e sociedades. A sobrevivência é o que está em questão nesse jogo de leituras
Para recapitular: certos dualismos~‑J
'Te.
sistentes nas tradições ocic‑‑‑firais; eles têm sido es­~J senciais à lógica e à prática da dominação sobre as mulheres, as pessoas de cor, a natureza, os trabalha­dores, os animais ‑ em suma, a dominação de todos aqueles que foram constituídos como outros e cuja tarefa consiste em espelhar o eu [dominante]. Estes são os mais importantes desses problemáticos dua­lismos: ~ eu/outr6~ mente/corpo, cultura/natureza, macho/férnea, civilizado/primitivo, realidade/apa­rencia, todo/parte, agente/instrumento, o que faz/o que é feito, ativo/passivo, certo/errado, verdade/flu­são, total/parcial, Deus/homem. O eu é o Um que não é dominado, que sabe isso por meio do traba­lho do outro; o outro é o um que carrega o futuro,
1 que sabe isso por meio da experiência da domina­ção, a qual desmente a autonomia do eu. Ser o Um é ser autónomo, ser poderoso, ser Deus ‑ mas ser o Um é ser uma ilusão e, assim, estar envolvido numa dialética de apocalipse com o outro. Por outro lado,

ser o outro é ser múltiplo, sem fronteira clara, bor­rado, insubstancial. Um é muito pouco, mas dois [o outro] é demasiado.
A cultura
h~qh‑tech contesta ‑ de forma intrigan­te ‑ esses dualismos. Não está claro quem faz e quem é feito na relação entre o humano e a máquina. Não está claro o que é mente e o que é corpo em máqui­nas que funcionam de acordo com práticas de codi­ficação. Na medida em que nos conhecemos tanto no discurso formal (por exemplo, na biologia) quan­to na prática cotidiana (por ex‑e‑m‑‑pTõ, na economia doméstica do circuito integrado), descobrimo‑nos como sendo ciborgues, híbridos, mosaicos, quime­ras. Os organismos biológicos tornaram‑se sistemas bióticos ‑ dispositivos de comunicaça"o como qual‑
utro. Não existe, em nosso conhecimento for­
amental, ontológica,
entre máquina e organismo, entre técnico e orgâni­
~õ A replicante RacE‑eT no _filme Bkwk
Runner, de
Ridley Scott, destaca‑se como a imagem do med
do amor e da confusão da cultura‑ciborgue.
Uma das conseqüências disso é que nosso senti­mento de conexão com nossos instrumentos é re­forçado. O estado de transe experimentado por muitos usuários de computadores tem‑se tornado a imagem predileta dos filmes de ficção científica e das piadas culturais. Talvez os paraplégicos e outras pessoas seriamente afetadas possam ter (e algumas vezes têm) as experiências mais intensas de uma complexa hibridização com outros dispositivos de comunicação." O livro pré‑feminista de Anne Mc­Caffrey,
The ship who sang (1969), explora a cons­ciência de uma ciborgue, produto híbrido do cérebro

de uma garota com uma complexa maquinaria, for­mado após o nascimento de uma criança seriamen­te incapacitada. O gênero, a sexualidade, a corporificação, a habilidade: todos esses elementos são reconstituídos na história. Por que nossos cor‑ 1 pos devem terminar na pele? Por que, na melhor das hipóteses, devemos nos limitar a consiTe‑rar como corpos, além dos humanos, apenas outros seres também envolvidos pela pele Do século XVH até agora, as máquinas podiam ser animadas ‑ era possível ;~tribuir‑lhes almas fantasmas para fazê‑las falar ou movimentar‑se ou para explicar seu desen­volvimento ordenado e suas capacidades mentais. Ou os organismos podiam ser mecanizados ‑ redu­zidos ao corpo compreendido como recurso da mente. Essas relações máquina/organismo são ob­soletas, desnecessárias. Para nós, na imaginação e na prática, as máquinas podem ser dispositivos pro­téticos, componentes íntimos, amigáveis eus. Não precisamos do holismo orgânico para nos dar uma totalidade impermeável, para nos dar a mulher total e suas variantes feministas (mutantes?). Deixem‑me concluir este ponto com uma leitura muito parcial da lógica dos monstros‑ciborgue de meu segundo grupo de textos ‑ a ficção científica feminista.
Os ciborgues que habitam a ficção científica fe­minista tornam bastante problemático o status de homem ou mulher, humano, artefato, membro de uma raça, entidade individual ou corpo. Katie King observa como o prazer de ler essas ficções não é, em geral, baseado na identificação. As estudantes que encontraram Joanna Russ pela primeira vez, estu­dantes que aprenderam a ler escritores e escritoras


‑v‑

modernistas como James Joyce ou Virginia Woolf~, sem problemas, não sabem o que fazer
comAdven­tures ofAlyx ou The~ man, nos quais os perso­nagens rejeitam a busca do leitor ou da leitora por uma inteireza inocente, ao mesmo tempo que ad­mitem o desejo por buscas heróicas, por um erotis‑ J mo exuberante e por uma política séria. Female man é a história de quatro versões de um único genoti­po, todas as quais se encontram, mas que, mesmo consideradas juntas, não formam um todo, não re­solvem os dilemas da ação moral violenta nem im­pedem o escândalo crescente do gênero. A ficcção científica feminista de Samuel R. Delany, especial­mente Tales ofNcvé~Ón, ridiculariza as histórias de origem ao refazer a revolução neolítica e ao repetir os gestos fundadores da civilização ocidental para subverter sua plausibilidade. James Triptree Jr., uma autora cuja ficção era vista como particularmente masculina até que seu "verdadeiro" gênero fosse re­velado, conta fábulas de reprodução baseadas em tecnologias não‑mamíferas, tais como rotação entre gerações de bolsas masculinas de chocar e cuidado masculino com os recém‑nascidos. John Varley cons­trói um ciborgue supremo, em sua exploração ar­qulfeminísta de Gaea, um dispositivo louco que éuma combinação de deusa, planeta, vigarista, ancia e tecnologia, em cuja superfície uma gama extraor­dinária de simbioses pós‑ciborgues é gerada. Octa­via Butler escreve sobre uma feiticeira africana que aciona seus poderes de transformação contra as ma­nipulações genéticas de sua rival (Wtldseed), de dis­torsões de tempo que levam uma mulher negra estadunidense moderna de volta para a escravidão,

na qual suas ações, em relação a seu senhor‑ances­tral branco, determinam a possibilidade de seu pró­prio nascimento
(Iündred). Ela escreve também sobre os flegítimos ins~qhts sobre identidade e co­munidade de uma criança, adotada, que é um cru­zamento de espécies, uma criança que veio a conhecer o inimigo como eu (Surpipor). Em Dawn (198 7), a primeira parte de uma série chamada Xe­n,ogenesis, Butter conta a história de Lilith Iyapo, cujo nome pessoal relembra seu status como a viúva do filho de imigrantes nigerianos que vivem nos Esta­dos Unidos. Como uma mãe negra cujo filho está morto, Lilith serve de intermediária para a transfor­mação da humanidade por meio de uma troca gené­tica com engenheiros amantes/salvadores/ destruidores/genéticos extra‑terrestres, os quais re­formam os habitats da terra após o holocausto nucle­ar e obrigam os humanos sobreviventes a entrar em uma íntima fusão com eles. Trata‑se de um romance que questiona a política reprodutiva, lingüística e nuclear, no campo mítico estruturado pela raça e pelo gênero, no final do século XX.
Por ser particularmente rico em transgressões de­l~fronteiras,1 o livro
Superluminal, de Vonda McIntyre, pode fechar este catálogo incompleto de monstros prorriÍssores e perigosos que contribuem para redefi­nir os prazeres e a política da corporificação e da es­crita feministas. Em uma ficção na qual nenhum personagem é "simplesmente" humano, o significa do do que é humano torna‑se extremamente pro­blemátic: . Orca, uma mergulhadora geneticamente alterada, pode falar com baleias assassinas, sobrevi­vendo nas condições do oceano profundo, mas ela


anseia por explorar o espaço como piloto, precisan­do de implantes biônicos que põem em risco seu parentesco com mergulhadoras e cetáceos. As trans­formações são efetuadas, entre outros meios, por vetores virais que carregam um novo código de de­senvolvimento, por cirurgia de transplante, por im­plantes de dispositivos microeletrônicos e por duplicações analógicas. Laenca torna‑se piloto, ao aceitar um implante de coração e uma série de ou­tras alterações que permitem a sobrevivência em viagens a velocidades que excedem à da luz. Radu Dracul sobrevive a uma praga viral em seu distante planeta, para encontrar‑se com um sentido de tem­po que muda as fronteiras da percepção espacial para espécies inteiras. Todos os personagens exploram os limites da linguagem, o sonho da experiência da comunicação e a necessidade de limitação, parciali­dade e intimidade, mesmo nesse mundo de trans­formação e conexão protéicas.
SuperIuminal significa também as determinantes contradições de um mundo‑ciborgue em um outro sentido; ele cor­porifica, textualmente, a intersecção ‑ na ficção ci­entífica citada ‑ da teoria feminista com o discurso colonial. Trata‑se de uma conjunção com uma lon­ga história que multas feministas do "Primeiro Mundo" têm tentado reprimir. Foi o que ocorreu comigo, na minha leitura de Superluminal, antes de ter sido chamada à atenção por Zoe Sofoulis, cuja localização diferente na informática da do­minação do sistema mundial tornou‑a agudamente alerta ao momento imperialista de todas as cultu­ras de ficção científica, incluindo a ficção científi­ca das mulheres. Por sua sensibilidade feminista

australiana, Sofoulis relembrou mais prontamen­te o papel de McIrityre como escritor das aventu­ras do Capitão Kirk e do dr. Spock na série de
TV jornada nas estrelas, do que sua reescrita do romance em Superluminal.
Os monstros sempre definiram, na imaginação' ocidental, os limites da comunidade. Os centauros e as amazonas da Grécia antiga estabeleceram os limites da pólis centrada do humano masculino grego ao vislumbrarem a possibilidade do casamen­to e as confusões de fronteira entre, de um lado, o guerreiro e, de outro, a animalidade e a mulher. Gêmeos não‑separados e hermafroditas constituí­ram o confuso material humano dos primeiros tem­pos da França moderna, o qual fundamentou o discurso no natural e no sobrenatural, no médico e no legal, nos portentos e nas doenças ‑ elemen­tos, todos eles, cruciais no estabelecimento da iden­tidade moderna.15 As ciências da evolução e do comportamento dos macacos e dos símios têm marcado as múltiplas fronteiras das identidades in­dustriais do final do século XX. Os monstros­ciborgue da ficção científica feminista definem possibilidades e limites políticos bastante difeiren­tes daqijeles propostos pela ficcão mundana do Ho­mem e da Mulher.

Essas são várias das conseqüências de se levar a sério a imagem dos ciborgues como sendo algo mais do que apenas nossos inímigos. Nossos corpos são nossos eus‑ os corpos são mapas de poder e identi‑
d~Y so
ade. s‑‑‑ciDorguenão constituem excecão a i
O corpo do ciborgue não é inocente; ele não nascei i

nu Paraíso; ele não busca uma identidade unitá­
ria, não produzindo, assim, dualismos antagônicos
sem fim (ou até que o mundo tenha fim). Ele assu­
me a ironia como nãt‑u72‑U‑m‑‑e muito pouco, dois­
é apenas uma possibilidade. O intenso prazer na
habilidade ‑ na habilidade da máquina ‑ deixa de
ser um pecado para ~ ~,stituÍ~as ~ecto d~óro­
cesso de corporificacão. A máquina não é uma coisa
a ser animada, idolatrada e dominada. A máquina
coincide conosco com nossos proces.sqs~_ela_.é‑.um
aspecto de nossa corporificação. Podemos ser rés­
ponsaveis pé as máquinas; elas não nos dominam
ou nos ameaçam. ‑ N ‑ ós somos responsáveis pelas_
fronteiras; nós somos essas fronteiras. Até agora
("era uma vez"), a corporificação feminina parecia
ser dada, org ânica, necessária; a corporificação fe­
minina parecia significar habilidades relacionadas à
maternidade e às suas extensões metafóricas. Podía­
mos extrair intenso prazer das máquinas apenas ao
custo de estarmos fora de lugar e mesmo assim com
a desculpa de que se tratava, afinal, de uma ativida­
de orgânica, apropriada às mulheres. Ciborgues
podem expressar de forma mais séria o aspecto ‑
algumas vezes, parcial, fluido ‑ do sexo e da corpo­
rifica~ão sexual‑ O gênero pode não ser, afinal de
contas, a identidade global, embora tenha uma in­
tensa profundidade e amplitude históricas.
` A questão, ideologicamente carregada, a respei‑ ‑i
to cio que conta como atividade cotidiana, como'
experiência, pode ser abordada por meio da explo­
ração da imagem do ciborgue. As feministas têm
argumentado, recentemente, que as mulheres estão
inclinadas ao cotidiano, que as mulheres, mais do

que os nomens, sustentam a vida cotidiana e têm,
assim, uma posição epistemológica potencialmente
privilegiada. Há um aspecto atrativo nesse argumen­
to, um aspecto que torna visíveis as atividades femi­
ninas não‑valorizadas e as reinvidicam como
constituindo a base da vida. Mas: "a" base da vida? E
o que dizer sobre toda a ignorância das mulheres,
todas as exclusões e negações de seu conhecimento e
de sua competência? O que dizer do acesso masculi­
no à competência cotidiana, o acesso ao saber sobre
como construir coisas, desmontá‑las, jogar com elas>
Que dizer de outras corporificações? O gênero ci­
borgulano é uma possibilidade local que executa uma
vingança global. A raça, o gênero e o capital exigem
uma teoria ciborguiana do todo e das partes. Não
existe nenhum impulso nos ciborgues para a produ­
ção de uma teoria total‑ o que existe é uma experiên­
cia íntima sobre fronteiras ‑ sobre sua con ‑ struçã9 e
desconstrução. Existe um sistema de mito,,, esperan­
do tomar‑se uma linguagem política que se possa
constituir na base de uma forma de ver a ciência e a
tecnologia e de contestar a informática da domina­
ção ‑ a fim de poder agir de forma potente.
Uma última imagem: os organismos e a política
organicista, holística, dependem das metáforas do
renascimento e, invariavelmente, arregimentam os
recursos do sexo reprodutivo. Sugiro que os cibor­
gues têm mais a ver com regeneração, desconfian­
do da matriz reprodutiva e de grande parte dos
processos de nascimento. Para as salamandras a
regeneração após uma lesão, tal como a perda de
um ~mW ro, ~ênvó~Iveum ~crescimento renovado da
estr função, com uma
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constante possibilidade gêmeos ou outras produções topográficas estranhas no local da lesão. O membro renovado pode se monstruoso, duplicado, potente. Fomos todas lesa­das, profundamente. Precisamos de regeneração, não de reniscimento e as possibilidades Vara nossa re­constituiçao incluem o sonho utópico da esperanç de um mundo monstruoso, sem zênero.
A imagem do ciborgue pode ajudar a expressar dois argumentos cruciais deste ensaio. Em primeiro lugar, a produção de uma teoria universal, totali­zante, é um grande equívoco, que deixa de apreen­der ‑ provavelmente sempre, mas certamente agora ‑ a maior parte da realidade. Em segundo lugar~ assu­mir a responsabilidade pelas relações sociais da ciência e da tecnologia significa recusar uma metafisica anti­ciência, uma demonologia da tecnologia e, assim, abraçar a habilidosa tarefa de reconstruir as frontei­ras da vida cotidiana, em conexão parcial com os outros, em comunicação com todas as nossas partes. Não se trata apenas da idéia de que a ciencia e a tec­nologia são possíveis meios de grande satisfação hu­mana, bem como uma matriz de complexas dominações. A im ,em do ciborgue pode sugerir uma forma de saída do labirinto dos dualismos pqr meio nossos corpos e nossos ins­trurnentos p~j~.QQs mesmas. Trata‑se do sonho não de uma linguagem comum, mas de uma poderosa e herética heteroglossia. Trata‑se da imaginação de uma feminista falando em línguas16 [glossolalia] para Micu­rir medo nos circuitos dos supersalvadores da direita. Significa tanto construir quanto destruir máquinas, identidades, categorias, relações, narrativas espaciais.

Embora estejam envolvidas, ambas, numa dança em: espiral, prefiro ser uma ciborgue a uma deusa.

NOTAS

O título original deste ensaio é 'A Cyborg Manifesto: Scien­ce, Technology, and Socialist‑FerniriÍsm in the Late Twentie­th Centur~', no qual "gr!??«'fuiiciona, é claro, como adjetivo. Em português, não se pode fazer, como se faz em inglês, com que um substantivo funcione como adjetivo a não ser, limita­damente, por meio do uso do hífen como, por exemplo, em ,,política‑ciborgue". No corpo do texto, optei por traduzir o w~ètiPo "cyborg" por "ciborguiano/a" ou, alternativamente, quando coubesse, pelo uso do hífen, como no exemplo cita­do. Apenas no título tomei a liberdade de deixar que o subs­tantivo "ciborgue" fiincionasse, de forma estranha à fingua portuguesa, como adjetivo. Cabe observar também que, em uma versão anterior, o título era "Mar~fèsto for the Cyborgs: Science, Technology, and Socialist‑Ferninism in the 1980's", erroneamente traduzido, na edição mencionada na Nota do Organizador que abre este volume, como `Um manifesto para os
cyborqs..." (o mesmo erro aparece na tradução espa­nhola), quando a tradução seria, evidentemente, "Manifesto
em favor dos
cyborgs ............................................ . Um manifesto para os cyborgs "
não faz, obviamente, nenhum sentido (N. do T).
2 A pesquisa na qual este ensaio se baseia foi financiada pela Universidade da Califórnia, Santa Cruz. Uma versão anterior do ensaio sobre engenharia genética foi pubficada em Hara­way, 1984. O manifesto ciborgue desenvolveu‑se a partir do ensaio "New machines, new bodies, new conimunities: poli­tical dilemmas of a cyborg fèrtúr1ist~',
7he Scholar and tbe Fe­minut X‑ lhe Questwn of Tecbnolv
,gy, conferência, Barnard College, abril de 1983. As pessoas associadas com o Departa­mento de Hstória da Consciência, da Universidade da Cá­fórnia, Santa Cruz, tiveram uma enorme influência sobre este ensaio: ele é assim, mais do que em geral ocorre, de autoria coletiva, embora aquelas pessoas que eu cito possam não re­conhecer suas idéias. Em particular, participantes dos cursos


de "Metodologia, Política, Ciência e Teoria Feminista", tanto de graduação quanto de pós‑graduação, deram sua contri­buição a este "Manifesto em favor dos ciborgues", Quero re­gistrar, em particular, meu débito para com Hilary YJeín (1989), Paul Edwards (1985), Lisa Lowc (1986) e James Clifford (1985). Partes do ensaio constituíram minha contri­buição à apresentação "Poetic toois and polítical bodies: fe­minist approaches to high technology cultur&', 1984, Ca~
American SMdiesAssociation, coletivamente desenvolvida com as estudantes de Pós‑graduação do Departamento de Histó­ria da Consciência: Zoe Sofoubs, "jupiter space"; Katie King, "The pleasures of repetition and the limits, of identification in ferninist science fiction: reimagination of the body after the cyborg" c Chela Sandoval, "The construction of subjectivíty and oppositional consciousness in feminist fi[m and video". A teoria de Sandoval sobre consciência de oposição foi publica­da como "WÓmen respond to racism: A Report on the Nati­onal Women's Studics Association Confèrence". Para as interpretações semiótico‑psícanalíticas sobre cultura nuclear, feitas por Sofoulis, ver Sofia (1984). Os ensaios inéditos de King ("Questioning tradition: canon formation and the vei­ling of power"; "Gender and genre; reading the science ficti­on of Joanna Russ"; 'Varleys Tam and Wizard.‑ feminist parodies of nature, culrure, and hardware") foram de grande inspiração para a redação do "Manifesto em favor dos cíbor­gucs". Barbara Epstein, Jeff Escoffier, Rusten Hogness e Jaye Miller contribuíram, de forma importante, para a discussão e foram de grande ajuda na organização do material. Partici­pantes do "Projeto de pesquisa sobre o Sificon Valley", da Universidade da CalifórnJa, Santa Cruz, e participantes das conferências e oficinas da SVRP foram muito importantes, especialmente Rick Gordon, Linda K~mbaü, Naney Snydcr, LangcIon Winner Judith Stacey, Linda Lim, Patricia Fernan­dez‑Kelly e Judith Gregory Finalmente, quero agradecer a Naney Hartsock por anos de amizade e discussão sobre teoria e ficção científica feministas. Quero agradecer também a Eli­zabeth Bind por meu butwn político favorito: "Ciborgues para a sobrevivência terreria".

Referências úteis sobre movimentos e teorias de ciência radical feminista e/ou de esquerda e sobre questões bioló­gicas/biotécnicas incluem: Bleier (1984, 1986),‑ Harding

(1986); Pausto‑Sterling (1985); Gould (1981); Hubbard
etalii (1982),‑ Keller (1985); Lewontín ctalii (1984); Ra­dical Sciencejoumal (passou a se chamar Science as Culture em 1987): 26 Freegrove Road, Londres N7 9RQ; Science for tbe People: 897 Main St, Cambridge, MA 02139, Esta­dos Unidos da América,

4 Pontos de partida para abordagens feministas e/ou de esquer­da sobre tecnologia e política incluem: Cowan (1983); Ro­thschild (1983)‑ Traweek (1988); Young e Levidow (1981, 1985)‑1 Weizcn~aun‑í (1976); Winner (1977, 1986); Zim­merman (1983); Athanasíou (1987)‑ Cohn (1987a, 1987b); '~ (1985); G1,b,1
Ekaro‑
Winograd e Flore~ (1986); Edwa,
nic NewsIetter: 867 West Dana St, 204, Mouritain View, CA 94041, Estados Unidos da América; Processed World, 55 Sut­ter St, San Francisco, CA 94104, Estados Unidos da Améri­ca; ISIS, Womcn's International Informatíon and Cominunication, Service, Caixa Postal 50 (Cornavin), 1211, Genebra 2, Suíça e Via Santa Maria Dell'Amma 30, 00186 Roma, Itália. Abordagens fundamentais sobre os modernos estudos sociais da ciência que rompem com a mistificação liberal de que tudo começou com Tbornas Kuhn incluem: Knorr‑Cetina (1981); Knorr‑Cetina e Mulkay (1983); La­tour e Woolgar (1979); Yoting (1979). A edição de 1984 do Directory of the Network for the Eth,:ograpinc Study of Scw~, Technoloffl, and Organizatiem lista uma ampla gama de pesso­as e projetos cruciais para uma análise radical da ciência e da tecnologia. Ela pode ser solicitada a NESSTO, Caixa Postal 11442, Stanford, CA 94305, Estados Unidos da América.
Um argumento provocativo e abrangente sobre a política e a teoria do "pós‑modenúsmo" é o de Fredric Jameson (1984), que argumenta que o pós‑modernismo não é uma opção, um estilo entre outros, mas uma categoria cultural que
exige uma reinvenção radical da política de esquerda a partir de seu inte­rior; não existe mais nenhuma posição exterior que dê senti­do à confortante ficção de que é possível manter uma certa distância crítica. Jameson também deixa claro por que não se pode ser a favor ou contra o pós‑modernismo, o que seria um gesto moralista. Minha posição é a de que as feministas (ou­tras pessoas e outros grupos também) precisam de uma con­tínua reinvenção cuIrural, de uma critica pós‑modernista e de

1

. 1
clip_image006.jpgclip_image008.jpgclip_image010.jpg
um materialismo histórico: nesse cenário, só uma ciborgue
pode ter alguma chance. A velha dominação do patriarcado
capitalista branco parece, agora, nostalgicamente inocente:
eles normalizaram a heterogencidade, ao fazer classificações
como aquelas de homem e mulher, de branco e negro, por
exemplo. O "capitalismo avançado" e o pós‑modernismo li­
beraram a heterogeneidade, deixando‑nos sem nenhuma nor­
ma. O resultado é que nós nos tornamos achatados, sem
subjetividade, pois a subjetividade exige profundidade, mes­
íno que seja uma profundidade pouco amigável e afogadora.
E hora de escrever A ~c
da clínica. Os métodos da clínica
exigem corpos e trabalhos‑ nós temos textos e superficies.
Nossa ‑ s dominações não funcionam mais por meio da medi‑‑.
Talizai~ào e da normalização‑ elas funcionam por meio de re­
des, do redesenho da comunicação, da administração do
‑é~trcsse. A normaliização cede lugar à automação, à absoluta­
i'édundância. Os livros de Michel Foucault ‑ O nascimento da
clínica, His~
da ^alUa& e Vgiar e punir ‑ descrevem
uma forma particular de poder em seu momento de implosão.
O discurso da biopolítica cede lugar, agora, ao jargão técnico, à
linguagem do substantivo partido e recombinado,‑ as multina­
cionais não deixam nenhum nome intacto. Esses são seus no­
mes, constantes de uma lista feita a partir de um número da
revista Scirnce: Tech‑Knowlcdge, Genentech, Allergen, Hybri­
tech, Compupro, Genen‑cor, Syntex, Aficlix, Agrigenetics Corp.,
Syntro, Codon, Repligen, MicroAngelo from, Scion Corp.,
Percom Data, Inter Systems, Cyborg Corp., Statcom Corp.,
Intertec. Se é verdade que somos aprisionados pela linguagem,
então, a fuga dessa pnsao exige poetas da linp_i~iem, exige um
tipo de enzima cultural que seja capaz de interromper o códi­
go; a heteroglossia ciGõrg‑i~ana é uma Wffirmas de política
cultural radicaL Para
~~. rara exemplos de poesia‑ciborgue, ver Perloff (1984); Fraser (1984). para exemplos de escrita‑ciborgue mo­dernista/pós‑modernista feirúnista, ver HOW(ever), 871 Cor­bett Ave, San Francisco, CA 9413 1.

BaudriHard (1983), Jameson (1984, p. 66) observa que a definição de simulacro, dada por Platão, é a de cópia para a qual não existe nenhum original, isto é, o mundo do capita­lismo avançado, da pura troca. Veja o número especial de Lkiscourse (n' 9,1987), sobre tecnologia ("Acibemética, a eco­logia e a imaginação pós‑moderna").

Refere‑se aos caminhões que transportavam, nos anos 1980­81, mísseis nucleares para a base aérea estadunidense de Gre­enham Conímon, na Inglaterra (N. do T).
Refere‑se ao grupo de mulheres que organizou, em agosto­setembro de 1981, uma demonstração de protesto contra a decisão da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Nor­te) de armazenar mísseis nucleares na base aérea estaduniden­se de Greenham Conímon, na Inglaterra. Após ter canúnhado cerca de 50 quilômetros, desde Cardiff, no País de Gales, até a base de Greenham Conímorn, situada em Bekshire, Ingla­terra, o grupo de mulheres acampou próximo ao portão prin­cipal da base (N. do T).
9 A "dança em espiral" refere‑se à prática de protesto realizada diante da prisão de Santa Rira, no Condado de Alameda, Califórnia, unindo guardas e manif" tes, por ocasião das manifestações de protesto antinuclears no início dos anos dos anos 80 (N. do T).
10 Para descrições etnográficas e avaliações políticas, veja Eps­tein (no prelo), Sturgeon (1986). Sem expressar qualquer ironia de forma explícita, ao utilizar a imagem do planeta visto do espaço, a demonstração do "Dia das Mães e Outros Dias", de maio de 1987, levada a efeito nas instalações de teste de an‑rias nucleares, em Nevada, levou em conta, entre­tanto, as trágicas contradições das perspectivas sobre a terra. Os participantes da demonstração solicitaram, aos adminis­tradores da tribo Shoshone, uma autorização oficial para utilizar seus terrenos, que tinham sido invadidos pelo gover­no estadunidense quando este construiu as instalações de testagem de armas nucleares em 1950. Detidos por invasão, os participantes da demonstração argumentaram que a polí­cia e o pessoal das instalações de teste das armas é que eram os invasores, por não terem a devida autorização dos adn‑ú­nistradores índigenas.
Escritores/as do "Terceiro Mundo", falando de lugar nenhum, falando do deslocado centro do uníverso, da terra, estão di­zendo coisas tais como: "Nós vivemos no terceiro planeta a partir do sol" (Sun Poem, de autoria do escritor jamaicano, Edward Karnau Braithwaite, resenha de Mackey, 1984). OsI as colaboradores/as do livro organizado por Smith (1983),

ironicamente, subvertem as identidades naturalizadas no mesmo e exato momento em que constroem um lugar a partir do qual podem falar ‑ um lugar ao qual possam cha­mar de "lar". Ver especialmente Reagon, (in Sniáth, 1983, p. 356‑68) e Trinh T Minh‑ha (1986‑87).
No original,
women ofw1~. A expressão afcolour não tem, neste contexto, a mesma carga depreciativa da exprçssão "de cor" em português. A palavra que carrega essa carga negati­va, em inglês, é "colored", claramente racista. Na impossibi­lidade de encontrar uma expressão em português que pudesse traduzir, sem conotações negativas, a expressão "of colour", mantive a tradução literal, "de cor", devendo‑se ter em men­te, na leitura, essa advertência (N. do T).
Hooks (1981, 1984); Hull
etaüi (1982). Bambara (1982) escreveu um romance extraordinário, no qual o grupo de teatro formado por mulheres de cor, ne Seven Súun, explo­ra uma forma específica de unidade política. Ver a análise do romance feita por Buticr‑Evans (1987).
14 Sobre o orientalismo nos trabalhos feministas e outros, veja Lowe (1986); Said (1978); Moharity (1984); ~y Vokei,
Om Chant.‑ Black Feminist Pmpectim (1984).
Katie King (1986, 1.987a) fez uma ariálise teoricamente sen­sível sobre as taxonomias ferninistas. Em sua análise, essas taxoncimias são analisadas como genealogias de poder. King examina o exemplo problemático, fornecido por Jaggar (1983), dos feminismos que se baseiam na construção de taxonomias, para construir uma pequena máquina que pro­duz a posição final desejada.
A caricatura do feminismo socialista e radical que faço neste ensaio é também um exemplo disso.
16 O papel central das torias de relações de objeto da Psicanálise e outras tendências universalizantes na teorização da repro­dução, do trabalho feminino relacionado ao cuidado dos fi­lhos e da maternidade, presentes em muitas abordagens epistemológicas, demonstra a resistência de seus autores ou de suas autoras àquilo que estou chamando de "pós‑moder­nismo". Para mim, tanto as tendências universalizantes quanto essas teorias psicanalíticas tornam diffcil uma análise do Iu­gar da mulher no circuito integrado", levando a dificuldades

sistemáticas na teorização sobre a construção das relações sociais e da vida social em termos de gênero. O argumento da posição feminista tem sido desenvolvido por: Flax (1983), Harding (1986), Harding e Hintikka (1983), Hartsock (1.983a, b), O'13rien (1981), Rose (1983), Smith (1974, 1979). Sobre as teorias que repensam as teorias do materia­lismo feminista e sobre as posições fernirústas desenvolvidas em resposta à essa critica, ver Harding (1986, p. 163‑96), Hartsock (1987) e H. Rose (1986).
17 Cometo um erro argumentativo de categoria ao "modificar" as posições de MacKinnori corri o qualificativo "radical", pro­duzindo, assim, eu própria, uni reducionismo relativamente a uma escrita que é extremamente heterogénea e que não utiliza, explicitamente, aquele rótulo. Meu erro de categoria foi causado por uma solicitação para escrever um ensaio, para a revista
SÓciaIistRn~ew, a partir de uma posição taxonômica ‑ o fen‑únismo‑sociabsta ‑ que tem, ela própria, uma história heterogênca. Uma crítica inspirada em MacKjnnon, mas sem o seu reclucionismo e com uma elegante análise feminista do paradoxal conservadorismo de Foucault em questões de vio­lência sexual (estupro), é a feita por Lauretis (1985; ver tam­bérn 1986, p. 1‑19). Uma análise sociohistórica teoricamente feminista da violência familiar; que insiste na complexidade do papel ativo das mulheres, dos homens e das crianças, sem perder de vista as estruturas materiais da dominação mascu­lina, bem como das dominações de raça e de classe, é a feita por Gordon (1988).
Esta tabela foi publicada em 1985. Meus esforços anteriores para compreender a biologia como um discurso cibernético centrado nas atividades de comando‑controle e os organis­mos como "objetos tecno‑naturais de conhecimento" estão em Haraway (1979, 1983, 1984). A versão de 1979 dessa tabela dicotômica aparece no capítulo 3 de Haraway (199 1); para uma versão de 1989, ver Haraway (1991), capítulo 10. As diferenças indicam mudanças no argumento.
19 Para análises e ações progressistas relativamente à biotecno­logia, ver:
GeneWatch, a Bulktin of the Committee for Respún­sibk Genetics, 5 Doane St, 4th Floor, Boston, MA 012909; Genetic Screerúng Study Group (chamava‑se, anteriormen­te, Ilie Sociobiology Study Group of Science for the Peo­ple), Cambridge, b^ Wright (1982, 1986); Yoxen (1983).


1
r

Para referências iniciais às "mulheres no circuito integrado", ver: D'Onofirio‑Flores e Pfafflin (1982), Fernandez‑Kefly (1983), Fuentes e Ehrenreich (1983), Grossman (1980), Nash e Fernandez‑Kelly (1983), Ong (1987), Science Poli­cy Rescarch Unir (1982).
21 Para a "economia do trabalho caseiro fora de casa", ver: Gor‑
don (1983); Gordon e KjmbaH (1985); Stacey (1987); Reskin e Hartmann (1986) ‑ 4
bmen and Poperpy (1984) ‑ S. Rose (1986); Coffins (l982~; Burr (1982); Gregory e Nus­sbaum (1982); Piven e Coward (1982); Microelectronics Group (2980); Stallard ct alii (1983), o qual inclui uma útil lista de recursos e organizações.
12 A conjunção das relações sociais da Revolução Verde com biotecnologias tais como a engenharia genética de plantas toma as pressões sobre a terra no Terceiro Mundo crescente­mente intensas. As estimativas da Agency for International Developrnent
(New Tork Times, 14 de outubro de 1984) são de que, na África, as mulheres produzem cerca de 90 por cento das reservas rurais de alimento; na Ásia, cerca de 60­80; e de que, no Oriente Próximo e na América Latina, elas fornecem 40 por cento da força de trabalho agrícola. Blum­berg sustenta que a política agrícola das organizações bem como as políticas das multinacionais e dos governos no Tercei­ro Mundo ignoram, em geral, questões fundamentais da divisão sexual do trabalho. A atual tragédia da fome na África pode ser devida tanto ao capitalismo, ao colonialis­mo e aos padrões de precipitação pluvial quanto à supre­macia masculina. Mais precisamente, o capitalismo e o racismo são estruturalmente dominados pelos homens. Ver também Blumberg (1981); Hacker (1984); Hacker e Bovit (1981); Busch e Lacy (1983); Wilfred (1982); Sa­chs (1983); International Fund for Agricultural Develop­ment (1985); Birci (1984),
11 Ver também Enloe (1983a, b).
24 Para uma versão feminista desta lógica, ver Hrdy (1981). Para uma análise das práticas de contar histórias das mulhe­res que trabalham em ciência, especialmente em relação àsociobiologia, as discussões em torno do abuso infantil e do inftnticídio, ver Haraway, 1991, cap. S.

21 Para o momento em que a construção dos significados popu‑
lares sobre natureza entre o público imigrante urbano esta­dui‑fidense deslocou‑se da caça com armas para a caça com câmeras fotográficas, ver Haraway (1984‑5, 1989b), Nash (1979), Sontag (1977), Preston (1984).
211 Para uma orientação sobre como pensar as implicações
políticas, culturais e raciais da história das mulheres que fazem ciência nos Estados Unidos, ver: Haas e Perucci (1984); Hacker (1981); Keller (1983); National Science Foundation (1988); Rossiter (1982); Schiebinger (1987); Haraway (1989b).
27 Markoff e Siegel (1983).
H~gh 7echnolqfflProftzÍon~forPea‑
ce e ~ter I‑rofewonalsfor Social Responsibility constituem organizações pronussoras.
28 King (1984). Esta é uma uma lista abreviada da ficção cien‑
tífica fen‑iinista que está subjacente a temas deste ensaio: Oc­tavia Butler,
Wild Seed, Mind ofMy Mtnd, ft~ndred, Surpipor; Suzy McKee Chamas, Motherliness; Samuel R. Delany, a sé­rie Never~on; Anne MeCaffery, 775e Ship "o Sang, Dino­saur Planet; Vonda Mclntyrc, Superiuminal, Dreamsnake; Joanna Russ,Adrentures ofAlix, T~5e FInaL‑Man; James Tip­tree, Jr, Star Songs ofan old 1>nmate, Up the Wa& of the Worid; John Varley, Titan, Wizard, Demon.
29 Os feminismos franceses representam uma importante con‑
tribuição para a heteroglossia‑ciborgue. Burke (1981); Iri­garay (1977,1979); Marks e de Courtivron (1980);S~gns (outono de 1981); Wittig (1973); Duchen (1986). Para uma tradução para o inglês de algumas correntes do femi­nismo francófono, ver
Feminis Issues.‑ Ajoumal ofFeminist Social and Political Theory, 1980.
10 Mas todas essas poetas são bastante complexas, principal‑
mente no tratamento que dão a temas sobre identidades pes­soais e coletivas descentradas, eróticas, mentirosas. Griffin (1978), Lorde (1984), Rich (1978).
Derrida (1976, especialmente parte 11); Lévi‑Strauss (1961,
especialmente "llie Writing Lesson~); Gates (1985); Kalín e
Neumaier (1985); Ong (1982); Kramarae e TreichIer (1985).
A aguda relação das mulheres de cor com a escrita como
tema e como política pode ser compreendida com a ajuda

das seguintes referências: Program for 7he Black Wornan and the Diaspora: Hidden Connections and Extended Ack­nowledgments', An International Literary Conference, Mi­chigan State Universit~ outubro de 1985; Evans (1984); Christian (1985); Carby (1987); Fisher (1980);
Frontien (1980, 1983); Kingston (1977)1‑ Lerner (1973); Giddings (1985); Moraga e Anzaldúa (1981),‑ Morgan (1984). As mulheres curo‑americanas e as mulheres européias anglófo­nas também têm construído relações especiais com sua escri­ta, relações nas quais a escrita aparece como um potente signo: Gilbert e Gubar (1979), Russ (1983).
A decisão do ideológico e domesticador complexo industri­al‑militar
hÉqh‑tech, de alardear as aplicações de suas tecnolo­gias aos problemas de fala e de movimento das pessoas descapacitadas (ou diferentemente capacitadas) adquire uma ironia especial numa cultura monoteísta, patriarcal e freqüen­temente antisernita, quando a fala gerada por computador permite que um garoto sem voz cante o Haftora, em seu Bar Mitzvah. Ver Sussman (1986). Tomando as definições soci­ais de "capacidade" particularmente claras, definições que são sempre relativas ao contexto, os militares hi~qk‑tech demons­tram uma habilidade muito especial para fazer com que os seres humanos sejam descapacitados por definição, o que cons­titui um aspecto perverso de grande parte do campo de ba­talha automatizado e do campo de Pesquisa e Desenvolvimento da Guerra nas Estrelas. Ver Welford (1' de julho de 1986).
14 James Clifford (1985, 1988) argumenta, de forma convin­cente, em favor do reconhecimento de uma invenção cultu­ral contínua, em favor da teimosia daquelas pessoas "marcadas" pelas práticas ocidentais imperializantes em não se deixar efin‑únar.

DuBois (1982), Daston e Park (s. d.), Park e Daston (1981).
0 substantivo
m~ tem a mesma raiz que o verbo de‑ i 1q1_ »wnstrar.

36"Falar em Unguas", em inglês, "to speak in tongues", significa aqui o fenômeno observado em certas religiões pentecostais, no qual os fiéis, em transe coletivo, expressam‑se em sons ininteligíveis, que dão a impressão de que as pessoas estão

falando uma diversidade de línguas ao mesmo tempo. Na frase, essa expressão, com sua conotação religiosa, está relaci­onada com a palavra "supersalvadores", também de tom re­figioso (N. do T).

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